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A dívida simbólica de aliança matrimonial e sua função terapêutica

Charles-Henry PRADELLES DE LATOUR
septembre 2015Traduction de Mariana LEAL DE BARROS

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1112

Résumés   

Résumé

L’article décrit une situation dans laquelle l’ethnographe est pris dans les tensions qui se nouent autour d’une affaire de sorcellerie chez les Bamiléké (Cameroun). Le vécu du chercheur lui permet de comprendre comment opère la cure traditionnelle dans cette société patrilinéaire. La conception lacanienne de la cure éclaire la portée d’un mythe et l’efficacité du rite thérapeutique, bien qu’entre psychanalyse et thérapie traditionnelle il n’existe qu’un parallélisme, non une analogie.

Abstract

The article describes a situation in which the ethnographer is caught in the tensions of a sorcery case among the Bamiléké (Cameroon). The researcher’s experience allows him to understand how traditional cure operates in this patrilineal society. The lacanian conception of cure enlightens the scope of the therapeutic myth, although none analogy does exist between psychoanalysis and traditional therapy, but a parallelism.

Resumo

O artigo descreve uma situação em que o etnógrafo é arrebatado pelas tensões que se engendram em torno de um caso de feitiçaria entre os Bamilekes (Camarões). A vivência do pesquisador lhe permite compreender como a cura tradicional opera nesta sociedade patrilinear. A concepção lacaniana da cura esclarece o alcance de um mito e a eficácia do rito terapêutico, ainda que entre psicanálise e terapia tradicional exista apenas um paralelismo, e não uma analogia. 

Index   

Index de mots-clés : psychanalyse, anthropologie, Lacan, thérapie traditionnelle.
Index by keyword : psychoanalysis, anthropology, Lacan, traditional therapy.
Índice de palavras-chaves : psicanálise, antropologia, terapia tradicional, Lacan.

Texte intégral   

1A análise de terapias realizadas por curandeiros Bamileke, objeto desta apresentação, foi fortemente induzida pela experiência que eu vivi em meu primeiro trabalho de campo na África, na chefia1 Bangwa. Para melhor contextualizar, os Bamileke residem na República dos Camarões, na província Centro-oeste, sobre platôs de mil metros de altitude onde beneficiam-se de condições climáticas e geográficas bastante excepcionais, que valorizaram, inclusive, o seu desenvolvimento demográfico. Trata-se de um país bastante populoso, cuja densidade demográfica supera em alguns lugares 200 habitantes por km2. Dividiu-se na metade do século XIX em uma centena de chefias com importâncias desiguais, dirigidas por um superior e um conselho de nove notáveis. A chefia Bangwa, localizada no estado do Ndé, é composta por 5000 habitantes. A densidade populacional faz com que a terra seja rara e que o habitat das famílias polígamas, composto tradicionalmente de casas contornadas de terras cultiváveis, seja contínuo desde o topo das colinas até os pântanos. Para sobreviver, os chefes de família, muito numerosos, tiveram que agregar o comércio às suas ocupações agrárias. Com isso, os Bamileke são conhecidos nos Camarões por serem empreendedores e hierarquicamente divididos dentre suas chefias por ordem de prestígio e riqueza : notáveis, filhos de chefe, súditos, moradores da aldeia.

2Desde minha chegada, fui calorosamente recebido por Watong, o chefe bangwa, que me propôs morar em seu palácio tradicional com minha família. Graças a esta recepção, pude dar início ao trabalho rapidamente. Um antigo catequista que havia renegado a religião cristã me ensinava a língua nativa pela manhã, e à tarde, ajudado por um jovem tradutor, dei início a diversas pesquisas com os habitantes. Tudo corria bem, até que por incentivo de um súdito mal intencionado, o chefe acusou publicamente o secretário da prefeitura de querer “envenená-lo”, ou seja, de querer matá-lo com feitiçaria. Esta acusação de regicídio2, que revelava uma tensão entre os dois poderes locais, o chefe tradicional da chefia de um lado e o poder administrativo do Estado de outro, despertou instantaneamente o meu interesse. Um caso de feitiçaria, não é uma bela experiência etnológica ? No entanto, eu me decepcionei, pois com isso o país se dividiu instantaneamente em duas facções que pararam de se falar. Tendo construído boas relações com as duas partes, senti-me dividido. Meu hóspede, o chefe, não aceitava que eu interrogasse os seus opositores e fazia vista grossa quando ficava sabendo que eu havia visto o secretário ou um de seus comparsas. Estes me explicavam que o chefe era retrógrado, enclausurado em crenças arcaicas, e me incitavam, em nome da modernidade que eu representava pela cor da minha pele, a apoiá-los. Além disso, o chefe exercia uma certa pressão sobre mim, deixando entender que ele havia me recebido para estudar os costumes do país, ou seja, para que eu os defendesse. Tudo parecia complicado, o que eu fariam em meio a esta confusão ? Ficar neutro num caso de feitiçaria é um quebra-cabeça. Para escapar um pouco desta situação que se tornou escabrosa, minha mulher e eu nos deslocávamos frequentemente à Yaoundé, onde residiam nossos colegas de ORSTOM para conversarmos e buscarmos conforto.

3Este conflito se transformou rapidamente numa bola de neve, todo mundo falava a respeito. O prefeito e o sub-prefeito de Ndé discutiam o assunto e as elites bangwa residentes em Yaoundé e em Douala começaram a se alarmar, pois era intolerável que os habitantes de uma mesma chefia não formassem « uma boca só3 », uma unidade. Um enteado do chefe que atuava como secretário do estado no ministério das Finanças em Yaoundé, junto com outras personalidades, fez com que seu padrasto compreendesse que ele deveria desistir de sua acusação, senão as elites não mais lhe ofereceriam a ajuda financeira necessária para assegurar o seu posto de chefe superior.

4O argumento « de peso » surtiu efeito, pois o chefe logo depois aceitou se reconciliar oficialmente com o secretário da prefeitura durante uma festa bianual dos Bangwa realizada em novembro. Neste dia, os dois homens firmaram um pacto de sangue durante uma reunião ocorrida na presença de notáveis e outras personalidades importantes. Não presenciei a situação, mas após a cerimônia vários participantes pertencentes aos partidos de oposição se dirigiram a minha mulher e eu para nos cumprimentar e agradecer por termos ficado neutros no assunto.

5A vida seguiu seu curso como antes. No dia da feirinha subsequente a esta ocasião, mefô Tchutuo, herdeiro da mãe do chefe Nônô4 – o pai de do chefe Watong –, começou a me chamar de « Tiènja’« , nome de louvor reservado aos filhos de filhas do chefe bangwa. Tinha vários « Tiènja » na praça da feira, mas não prestei muita atenção no fato até o momento em que três homens, com bom humor, pegaram-me pela mão e levaram-me até a rainha-mãe, que se endereçou a mim na língua bangwa, em meio aos risos dos demais. Como é comum dentre os costumes locais, ofereci-lhe alguns pedaços de nozes de cola, ao que ela disse : « Obrigada Tiènja’« . Eu fui batizado. Este apelido não me abandonou mais. Ele preocupou o chefe que compreendeu imediatamente que nossas relações iriam mudar, mas alegrou os habitantes do país que se sentiram no direito de me fazer falar sua língua e de poder brincar comigo. Assim, compreendi que os ritos que eu acreditava estarem abandonados, ainda eram praticados, mas de manhã cedo, no nascer do sol, enquanto eu dormia. « Acorde (mais cedo) e você verá ». A pesquisa etnográfica que havia se transformado num ‘caminho da cruz’, de repente tornou-se apaixonante.

6O que se passou ? Quando pude estabelecer uma distância da situação, percebi que fui sucessivamente apreendido pelo discurso de feitiçaria e de aliança matrimonial, pois, nesta sociedade patrilinear, um “Tiènja” é aliado do chefe Bangwa. Ao fim desta experiência, ao analisar meus dados etnográficos, percebi que os curandeiros utilizavam, sem o saber, o mesmo tipo de mudança de discurso para tratar os seus pacientes ritualmente. Nesta sociedade, de fato, há aproximadamente vinte anos, o curandeiro, chamado nggangkang, « aquele que possui um poder, kang, ligado à floresta », recebia seus pacientes que, afetados por uma doença ou por um sofrimento psíquico, pensavam unanimemente que seus infortúnios se deviam à feitiçaria. Persecutórios, eles esperavam que o curandeiro dotado de um poder excepcional vindo da floresta, os desenfeitiçaria. O nggangkang os escutava sobre seus males e consultava em seguida a aranha tarântula, instância divinatória dos Bamileke. Este presságio indicava um tanto quanto sistematicamente que os pacientes levassem oferendas de alimentos aos ancestrais masculinos de suas mães, que, dentro de uma sociedade patrilinear, são os pais por aliança. Além disso, o curandeiro lhes dava uma maceração de plantas para beber pela manhã e à noite. Enfim, uma vez as oferendas realizadas e o tratamento medicinal aplicado, o curandeiro pedia aos pacientes que voltassem para vê-lo trazendo um galo ou uma galinha -de acordo com o sexo de cada um- e os utilizava para limpar seus corpos com o intuito de eliminar definitivamente o mal que os habitava. « Agora, acabou », ele dizia para concluir a cura.

7A melhor maneira de entrar nos arcanos ao mesmo tempo subjetivos e sociais da feitiçaria, consiste, em nosso ponto de vista, em se remeter ao mito bamileke que, lembrando a etiologia desta crença, revela suas alçadas.

Era uma vez duas mulheres que cultivavam terras vizinhas. Uma delas obtinha, a cada ano, uma colheita de inhames muito mais abundante do que a outra. Um dia, atravessando um pântano na floresta, a mulher que tinha menos sorte foi interpelada por uma ervinha : « Eu sei que você está infeliz », diz ela, « colha-me e coloca-me em teu saco, sua terra produzirá no futuro mais do que a da tua vizinha ». A mulher aceitou a proposta e, no ano seguinte, foi agraciada. A erva saiu então do saco e cobrou sua dívida : « Bem, diz ela, eu tenho sede, e como só bebo sangue, tu necessitas me dar um de teus filhos ». A mulher lhe entregou o seu mais velho a contragosto e a erva bebeu seu sangue até sua morte. Não satisfeita, pediu o segundo filho à mulher, que recusou o pedido. Ela insistiu por três vezes, mas a mulher não cedeu. Assim, a ervinha disse : « Se não queres mais me saciar, engula-me para que eu não seja torturada pela sede ». A mulher a engoliu. Desde então, a erva continuou em seu ventre e no das filhas que ela pôs no mundo. Graças a este pequeno órgão suplementar que estas mulheres-feiticeiras têm no ventre, elas se transformam à noite em corujas-vampiras para cometer seus crimes no vilarejo (Pradelles de Latour,1997, p. 69).

8Tanto na vida cotidiana quanto na narrativa, um caso de feitiçaria tem como ponto de partida um antagonismo. Este desentendimento implica aqui que a mulher lesada sente inveja da outra. Assim, o mito indica claramente que, desde o início, um caso de feitiçaria baseia-se sobre um sentimento de frustração aliado à persecutoriedade. « A feitiçaria, explicava Edward Evans Pritchard (Evans Pritchard, (1937) 1988), é a expressão do conflito ». No entanto, estas mulheres não se destroem fisicamente como numa agressão ; pelo contrário, elas fazem a economia da violência pelo fato de não se falar mais e por chamar, por debaixo do pano, a terceira instância que é a feitiçaria, perfeitamente incarnada pela ervinha. Assim como os feiticeiros e feiticeiras acusado(a)s dos piores males, a ervinha é um agente duplo que, advindo ao mesmo tempo do vegetal pela sua natureza e do humano pela sua fala, é tida por onisciente e onipotente. Em bamileke, erva se diz rhâ, termo que significa erva e medicamento, ou seja, ela faz parte dos simples (plantas medicinais) ; é um pharmacon dotado de duplo poder de curar e matar. Bivalente em essência, ela propõe à mulher frustrada o melhor, uma colheita excepcionalmente abundante, e pede-lhe em contrapartida o pior, a morte de um de seus filhos. Ela toma como pretexto a lei dos homens, a reciprocidade – se eu te dou, tu me darás em troca e a perverte exigindo o impossível, inhames em troca de um ente querido. Na feitiçaria, não há mais nenhum equivalente geral seguro, pois o princípio de reciprocidade é subvertido por uma demanda infinita, que, idêntica àquela que corrói os viciados de uma adição, é uma fonte inesgotável de insatisfação e contradição. Como sair de um abismo de angústia como este ? Capturada nessa armadilha, a mulher tenta pôr fim nisto tudo recusando o seu segundo filho à ervinha. Mas esta última opera uma reviravolta intrínseca aos conflitos duais : de agente, ela faz-se objeto, que, uma vez engolido pela mulher, torna-se a causa de sua transformação em coruja que, à noite, vampiriza suas vítimas. Em um ciclo sem fim, a perseguidora torna-se perseguida, e, novamente, perseguidora, apresentando-nos, assim, que as duas mulheres antagonistas não são distintas. Como uma parte delas mesmas está ligada à outra, suas demandas nunca são satisfeitas senão na destruição da outra, destruição à qual a feitiçaria, convocada como elemento terceiro, tem que responder. Mas como o princípio da feitiçaria, à exemplo da ervinha, é uma falsa alteridade em equilibro entre, socialmente, a floresta, lugar da selvageria e o vilarejo civilizado, e, subjetivamente, sobre o eu e o outro, ela perpetua o conflito mantendo a confusão (a não separação) entre as duas partes. Como é impossível sair da feitiçaria por meio da feitiçaria, de um conflito por meio de um conflito, não há outras soluções possíveis que mudar de discurso, o que faz o nggankang, via aranha vidente, prescrevendo aos pacientes perturbados pelos males e pelos conflitos a realização do culto dos ancestrais por aliança.

9Para compreender a dívida de aliança matrimonial, é preciso primeiramente lembrar que existe uma diferença parental importante entre a civilização ocidental, que privilegia a filiação, a relação pais-filho, e as sociedades de tradição oral onde a aliança matrimonial, selada por prestações oferecidas por quem recebe as mulheres a que as oferece, tem um papel preponderante. No primeiro sistema de parentesco, o pai, dito « castrador », é aquele que interdita seus filhos de estabelecerem relação sexual com sua mãe e entre eles em nome da lei parental que ele representa à fim de assegurar a unidade e a continuidade de sua descendência. No segundo sistema, o agente castrador é a instância parental terceira (avô materno ou sobrinho uterino), a qual autoriza, por convenção, um pai ou um irmão a dar sua filha ou sua irmã como esposa com a condição de que esta mudança de estatuto parental (intrínseco ao interdito do incesto) seja avalizada por uma falta representada por uma dívida simbólica, uma dívida sem conteúdo. No primeiro caso, a castração é edipiana e freudiana, e, no segundo caso é tipicamente lacaniana, visto que se refere diretamente à falta, base do desejo. Estando atado a uma dívida impagável à família de sua esposa, a mulher que o marido recebe em casamento é « Não-toda ». Ou seja, não há gozo sem uma falta inicial que o alivia de sua autossuficiência. Haveria, assim, duas castrações, uma edipiana, outra ligada à ordem do desejo ? Não, pois elas não se referem à mesma posição subjetiva. A primeira, fundada em identificações com uma figura paterna e com um ideal social portador de interditos, remete à privação, enquanto a segunda, vazia de conteúdo, que não coloca em jogo nem bem nem mal, é propriamente falando, a castração, ou seja, um corte simbólico suscetível de tornar-se um ato : operar uma separação e dar início a um novo estado.

10Estas duas posições subjetivas são incarnadas nos Bamileke patrilineares pelo pai da criança, pai segundo a filiação, e avô materno, o pai segundo a aliança matrimonial, chamado localmente de « pai de trás ». A comparação de suas funções e de seus discursos revela o modo como a privação e a castração são socialmente instituídas. Primeiramente, no plano material, um pai oferece bens a seus filhos ; ele os alimenta, os veste, ajuda-os a se casar e, quando morre, transmite sua herança a um deles. Em contrapartida, os filhos devem lhe oferecer as primícias do seus trabalhos – primeira colheita ou primeiro salário- e sustentá-lo na velhice. O pai que dá também pode tirar. Suscetível de recompensar ou de punir, ele é o encarregado da educação. É ele quem mostra a seus filhos o que se deve ou não fazer ; ele lhes « mostra o caminho » para que eles possam ser agricultores e comerciantes como ele. Ele pode, inclusive, preferir um filho a outro, dar-lhe mais benefícios e confiar-lhe segredos, mas se a criança o decepciona, ele tem o direito de lhe amaldiçoar na presença de membros de sua linhagem, derramando água no pé da árvore que representa o deus de sua linhagem. A fala do pai, que de acordo com cada caso pode ser permissiva ou repressiva, é ambivalente como o é tradicionalmente a função paterna que reflete tanto o sagrado quanto o profano.

11No entanto, o avô materno que remete à dívida de aliança matrimonial não dá nada aos filhos de suas filhas. Após sua morte, ele não lhes transmite nenhum patrimônio e em vida não lhes oferece nem terra nem bem. No caso, ele pode lhes emprestar um objeto na condição de que seja devolvido antes do cair da noite, senão o objeto cedido torna-se causa de maldição. O avô materno que não dá nada, não pode sancionar nem o bem nem o mal. Assim, ele não pode nem maldizer seu neto, nem lhe confiar segredos. « Não cabe a mim, diz ele, colocar a mão sobre a criança, se eu o faço e lhe acontece um infortúnio, dirão que eu o matei ». Como o avô materno e o neto não compartilham nem cumplicidade nem hostilidade, estabelecem uma relação pacífica, pois são um para o outro uma alteridade respeitada. A fala do « pai de trás », a qual se baseia na dívida simbólica, não pode se prevalecer nem de um saber a transmitir, nem de uma verdade preestabelecida para julgar os filhos de suas filhas. Dito de outra forma, não pode haver entre eles nem identificações nem acusações. Avô e neto ficam do lado de fora da religião e da feitiçaria ao mesmo tempo. Esta é a razão pela qual a mãe do chefe Nônô me nomeou « Tiènja ». Mas como o avô não pode tomar qualquer decisão, sua fala é marcado pela incompletude ; sua fala é parcial, pois se funda na dívida simbólica intrínseca à castração, ela é ausência de saber e de sentido. Assim, poderíamos compreender por que quando eu perguntei aos meus interlocutores « Qual é para você a fala mais forte, a fala do pai ou a do avô ? », eles me responderam unanimemente : a segunda. « – Por quê ? – Porque eu jamais serei rejeitado por ele » ; o que quer dizer, « porque eu serei sempre respeitado como alteridade, como sujeito ».

12As funções paternas do pai e do “pai de trás”, que remetem a duas posições subjetivas diferentes, implicam em comportamentos e discursos distintos. Na privação, as relações são fundadas no jogo de identificações que implica na transmissão de um saber e na regulação do princípio de reciprocidade. Na castração, que, segundo a ordem do desejo não deve nada nem a um saber, nem às relações especulares e econômicas da reciprocidade, a alteridade de cada um, apartada por uma falta simbólica, é respeitada. Compreendemos assim, que quando o curandeiro prescreve ao seus pacientes o culto dos ancestrais por aliança, ele os convida a se reescreverem na dívida simbólica e, por isso mesmo, na “relação de traz”, que, pacífica, permite fazer um corte que inicia uma mudança de discurso, saindo assim do discurso persecutório e entrando de outra maneira no discurso cotidiano baseado nas identificações com o pai e com as normas sociais. Após a frustração e a castração, a privação. O rito terapêutico dos Bamileke compõe-se de três fases como o são os ritos em geral, com essa diferencia que essas fases não correspondem às que Arnold Van Gennep apontou (Van Gennep, 1969). No nosso caso, a fase central não é unificadora (ligando os mais novos aos mais velhos), mas separadora, em consequência do reestabelecimento da dívida simbólica de aliança matrimonial.

13Neste sentido, a ordenação do rito terapêutico dos Bamileke em três tempos é semelhante àquela que pontua repetidamente uma cura psicanalítica. O analisando, levado transferencialmente a ser frustrado em sua demanda tanto pelo psicanalista quanto por outras pessoas, volta-se, num primeiro momento, a uma regressão às suas tendências infantis. Esta regressão se revela benéfica se, num segundo momento, o analisando retoma este passado ressignificado no presente e assim descobre no ‘a posteriori’ os eventos e os significantes que o determinaram à sua revelia. Fazendo isso, ele se submete à castração, à falta que separa, propulsora de atos que o levam progressivamente a sair de seu sintoma, e, num terceiro tempo, a se reinscrever, graças a novas identificações, em uma nova relação consigo e com os outros.

14O desenvolvimento da cura psicanalítica ritmado pela repetição ordenada de três posições subjetivas – frustração, castração, privação – que encontramos na terapia tradicional dos Bamiléké sob a forma de três fases rituais marcadas por discursos que se encastram nessas posições subjetivas, não permite nem que concluamos que a psicanálise está na base do rito terapêutico tradicional, nem que este último se encontra no princípio da cura psicanalítica. Entre estas duas formas de terapias, existe apenas um paralelismo, trata-se de uma similaridade de estruturas, o que eu ilustrei com auxílio das fórmulas dos quatro discursos de Lacan em meu último livro (Pradelles de Latour, 2014). Mas este paralelismo não implica nenhum conteúdo, nenhuma analogia, senão a falta simbólica propulsora do desejo que se encontra no princípio da castração e na base das terapias psicanalíticas. Ou seja, entre o inconsciente e o social, não há nenhuma relação comum, e, por consequência, não há inconsciente coletivo, conceito cujo fracasso foi sublinhado pelo ontogenetismo de Géza Róheim (Roheim, 2000) e o complementarismo de Georges Devereux (Devereux, 1972).

Bibliographie   

DEVEREUX, Georges, Ethnopsychanalyse complémentariste, Paris : Flammarion, 1972.

EVANS PRITCHARD, Edward, Wichtcraft, Oracles and Magic among the Azandé, London: Oxford University Press, [1937] 1988.

PRADELLES DE LATOUR, Charles-Henry, Le Crâne qui parle. Etnopsychanalyse en pays bamiléké, Paris : Epel, [1991] 1997.

PRADELLES DE LATOUR, Charles Henry, La dette symbolique. Thérapies traditionnelles et psychanalyse, Paris : Epel, 2014.

ROHEIM, Géza. L’énigme du Sphinx, Paris : Payot et Rivages, coll. « Science de l’homme Payot », 2000.

GENNEP, Arnold von, Les Rites de passage, Paris : Librairie critique Emile Nourry, 1969.

Notes   

1  NdT : Não foi possível encontrar um correspondente direto na tradução para o português. O termo em francês é “chefferie”, que pode também ser compreendido por “liderança”, o mesmo vale para “chef”, que se repete ao longo do manuscrito.

2  Os chefes bamilekes chamados , « chef » em linguagem coloquial, são entronizados como reis, cf. C-H Pradelles de Latour ([1991] 1997, p. 177-183).

3  NdT : Trata-se de uma expressão corrente entre os bamileke, “une seule bouche”.

4  Assim que o chefe Nônô foi empossado chefe, sua mãe tornou-se mefô, « Rainha-mãe »,e à sua morte, sua filha e posteriormente a filha de sua filha herdaram o seu titulo e os seus bens. Aqui se trata desta última.

Citation   

Charles-Henry PRADELLES DE LATOUR, «A dívida simbólica de aliança matrimonial e sua função terapêutica», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Les numéros, mis à  jour le : 09/09/2015, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1112.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Charles-Henry PRADELLES DE LATOUR

Charles-Henri Pradelles de Latour est ethnologue africaniste, directeur de recherche du CNRS et psychanalyste. Ouvrages publiés : Le crâne qui parle (1996), Incroyance et paternités (2001), Rites thérapeutiques dans une société matrilinéaire. Le gèrem des Pèrè (2005), La dette symbolique. Thérapies traditionnelles et psychanalyse. (2014).

Quelques mots à propos de :  Mariana LEAL DE BARROS

Mariana LEAL DE BARROS (Universidade São Paulo)