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De quem é a capoeira ? Considerações sobre o registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil

Simone Pondé VASSALLO
décembre 2012

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.580

Résumés   

Résumé

Cet article porte sur quelques tensions qui ont émergé lorsque la capoeira est devenue un patrimoine culturel immatériel brésilien, en 2008. Nous pensons que la notion moderne et occidentale de patrimoine reproduit un phénomène « d’imagination métropolitaine », fondé sur des principes universels, réduisant d’autres systèmes de représentation à cette même logique. Lorsque la capoeira devient patrimoine national, elle doit se soumettre à cette logique qui ne prend pas en compte les multiples possibilités de la comprendre et de la pratiquer. Ce processus crée des attentes universalisantes qui ne peuvent que très difficilement être suivies par les pratiquants et qui provoquent plusieurs conflits.

Abstract

This article is about the tensions that emerged when capoeira became a Brazilian immaterial heritage, in 2008. The idea I develop here is that the western and modern notion of cultural heritage reproduces a “metropolitan imagination” phenomenon, based on universal principles which reduce several other systems of representation to its own logic. When capoeira becomes a national heritage, it submits itself to this logic which restricts the many ways of understanding and practicing it. This shift generates some universalizing expectations that can not easily be implemented by the practitioners and creates several conflicts.

Resumo

Este artigo procura refletir sobre algumas tensões que acompanham o registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil, ocorrido em 2008. Parto da idéia que a noção de patrimônio, em sua acepção moderna e ocidental, reproduz um fenômeno de “imaginação metropolitana”, calcado em princípios coletivizadores e universalizantes que reduzem outros possíveis sistemas de representação a essa mesma lógica. Quando a capoeira se torna patrimônio nacional, deve se submeter a essa lógica que não consegue levar em conta as possibilidades múltiplas de se entender e de se praticar que caracterizam o seu universo. Um dos efeitos desse processo é que se criam expectativas de atitudes e entendimentos universalizantes que dificilmente podem ser atendidas pelos capoeiristas e que geram uma série de conflitos e descontentamentos.

Index   

Index de mots-clés : capoeira, patrimoine, identité nationale.
Index by keyword : capoeira, heritage, national identity.
Índice de palavras-chaves : capoeira, patrimônio, identidade nacional.

Texte intégral   

1No ano de 2004, o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, levou um grupo de capoeiristas a Genebra, na Suíça, para homenagear o embaixador Sérgio Vieira de Mello, morto um ano antes em atentado terrorista no Iraque. Naquele momento, Gil lançou as bases de um Programa Brasileiro e Mundial para a Capoeira (Castro, 2007). O então ministro chamou a atenção para a grande expansão da capoeira pelo mundo afora e declarou que, a partir daquele momento, o Ministério da Cultura reconheceria essa prática « como ícone da representatividade do Brasil perante os demais povos » (www.cultura.gov.br/scripts/discursos.idc ?codigo =1143). Gil entendia esta atitude como uma « reparação histórica a esta manifestação dos africanos escravizados no Brasil » (idem).

2Há que ser considerado o momento político em que essa decisão foi tomada : as políticas públicas do governo Lula, marcadas pela tentativa de horizontalizar as relações entre o Estado e a sociedade, de explicitar a igualdade entre seus membros. Tal projeto se estenderia às ações do Ministério da Cultura, que atribuía à cultura um papel estratégico : o da superação das diferenças (Alencar, 2005). Mas há ainda quem diga que, por trás dessa iniciativa, houve também o medo de que algum aventureiro lançasse mão da capoeira, ou seja, que outros povos e outras nações dela se apropriassem, diante do tamanho sucesso que a luta afro-brasileira vem obtendo no exterior. Vejamos um pouco mais atentamente o contexto dentro do qual o registro da capoeira como patrimônio imaterial pôde ocorrer e as novas questões1 que ele suscita.

A invenção do patrimônio

3A formação dos modernos Estados nacionais pauta-se em alguns pressupostos fundamentais para o entendimento da nossa questão. Em primeiro lugar, podemos mencionar a idéia de uma cultura única, singular, que caracterizaria a própria essência de cada um desses Estados-nações :

Como se sabe, o termo « cultura », em seu uso antropológico, surgiu na Alemanha setecentista e de início estava relacionado à noção de alguma qualidade original, um espírito ou essência que aglutinaria as pessoas em nações e separaria as nações umas das outras. Relacionava-se também à idéia de que essa originalidade nasceria das distintas visões de mundo de diferentes povos. Concebia-se que os povos seriam os « autores » dessas visões de mundo. Esse sentido de autoria coletiva e endógena permanece até hoje (Cunha, 2009 : 354-355).

4A nação moderna, dotada de uma cultura própria, que a singularizaria perante as demais, teria também o seu patrimônio, a sua herança, ou seja, seus bens, móveis e imóveis, transmitidos através das gerações, que assegurariam a sua continuidade temporal e que lhe atribuiriam um valor altamente positivo. Cultura e patrimônio – e podemos também incluir o folclore, entendido como expressão do povo, da cultura popular – garantiriam, então, a própria identidade da nação. Portanto, a idéia de patrimônio se relaciona com a de posse, de propriedade, o que traz algumas consequências :

Apropriarmo-nos de alguma coisa implica uma atitude de poder, de controle sobre aquilo que é objeto dessa apropriação, implicando também um processo de identificação por meio do qual um conjunto de diferenças é transformado em identidade (Gonçalves, 1999 : 24).

5O patrimônio, a propriedade, podem ser tanto individuais quanto coletivos, já que indivíduo e sociedade são aqui pensados a partir de características análogas. Por um processo metonímico e de objetificação da identidade (Handler, 1984), as qualidades atribuídas à nação transferem-se para os indivíduos que a compõem e vice-versa, ao mesmo tempo em que se cristalizam em torno de certos atributos considerados comuns a ambos.

6As idéias de nação e de autenticidade tornam-se corolárias da noção de indivíduo moderno : tal como os indivíduos, a nação é pensada como sendo portadora de caráter e autonomia. O mundo social que a compõe é visto como uma « coleção de indivíduos », ao passo que o seu mundo físico torna-se uma « coleção de elementos », passíveis de comporem o patrimônio nacional :

Assim como a identidade de um indivíduo ou de uma família pode ser definida pela posse de objetos que foram « herdados » e que « permanecem » na família por várias gerações, também a identidade de uma « nação » pode ser definida pelos seus « monumentos », aquele conjunto de « bens culturais » associados ao « passado » nacional (Gonçalves, 2007 : 20).

7No momento em que um objeto – ou uma prática cultural – é transformado em patrimônio, passa a ter um tipo de relação de propriedade muito particular com o indivíduo ou o grupo que tem legitimidade, agora calcada em novos parâmetros, para representá-lo. Nos Estados modernos, o patrimônio cultural seria, então, toda expressão artística – desde que digna de ser assim considerada – que remetesse à totalidade da nação e que a ela pertencesse. A mesma lógica metonímica que equaciona os indivíduos à nação se estabelece entre a nação e o patrimônio, em que este simboliza e identifica aquela. Nesse contexto, o patrimônio é pensado como pertencendo indistintamente a todos os cidadãos que representam a nação, ao mesmo tempo em que passa a ser alvo de « proteção » por parte do Estado. Ou seja, a partir de então, o Estado assume o papel de decidir os rumos que tal prática ou objeto deve ou não tomar, através de suas políticas patrimoniais.

8Isso significa que, ao transformar um objeto ou uma prática em patrimônio, em bem cultural, este ou esta são ressignificados, bem como as relações de propriedade. A partir desse momento, sua « posse » não recai apenas sobre os indivíduos e grupos diretamente relacionados a tal prática ou objeto, mas também ao Estado, que tem o poder de decisão final, por mais democráticas que sejam as suas intenções. Quando a capoeira é registrada como patrimônio imaterial, os capoeiristas passam a ter que se submeter a uma série de dinâmicas determinadas pelo Estado através de seus órgãos mais diretamente relacionados a essa questão, como o Ministério da Cultura e o IPHAN2.

9Essa transformação semântica é mais profunda do que aparenta. Ela expressa uma « imaginação metropolitana », nos termos de Manuela Carneiro da Cunha, moderna e ocidental, que tende a perceber as diversas práticas populares a partir da sua própria lógica, dicotômica e universalizante. Mas, como indaga essa mesma autora, « que sistema de representação está sendo introduzido nesse processo ? », (Cunha, 2009 : 335). E eu acrescentaria : e quais os seus possíveis efeitos ? Quais as novas relações de autoridade daí decorrentes ? Como elas se relacionam com as antigas relações de autoridade (por exemplo, entre os grupos que, de fato, veiculam uma atividade cultural promovida a patrimônio, tal como os capoeiristas) ?

10Nessa passagem, nessa transformação, que podemos chamar chamar de « processo de patrimonialização », a cultura possui um efeito homogeneizante e coletivizador : « todos a possuem e por definição todos a compartilham ». Esquece-se que, nos usos vernaculares, tais práticas estão interligadas a uma « rede de direitos diferenciais » (Cunha, 2009 : 362). Numa determinada sociedade, qualquer que seja ela, são inúmeras as práticas e os objetos que raramente podem ser manuseados indiscriminadamente, e sem nenhum tipo de regra, por qualquer um. No mundo da capoeira, por exemplo, sabemos que, de um modo geral, o manuseio do berimbau é alvo de inúmeros cuidados e raramente pode ser confiado a um novato. Portanto, a transformação de uma prática em patrimônio, em símbolo de uma determinada coletividade, seja ela nacional ou local, coloca-a num outro plano de representação em que, a nível discursivo, passa a pertencer a todos indiscriminadamente e transfere ao Estado o poder de por ela decidir em última instância.

11A noção de patrimônio, moderna e ocidental, cria uma relação muito específica entre presente e passado, entre práticas, objetos e um determinado grupo, entre este grupo e aquilo que supostamente o representa, ou seja, sua própria identidade. Trata-se de uma categoria socialmente construída, devendo ser compreendida através de uma perspectiva processual, que leve em conta a dimensão temporal e suas sucessivas transformações. Pois quando passa a se aplicar a uma determinada realidade – ou seja, quando um determinado objeto, prática ou local é transformado em patrimônio nacional – , altera o sentido e as dinâmicas do mesmo. Isso não significa dizer que diferentes povos, em diferentes momentos históricos, não tenham relações muito específicas, inclusive de propriedade, com certas práticas e objetos que lhe são fundamentais. Mas acredito que o modo pelo qual pensamos a categoria patrimônio nos dias de hoje é bastante singular e diz respeito aos processos padronizantes mencionados acima. Usar um só termo para realidades culturais tão diferenciadas encobre o risco de ocultarmos as singularidades e pensarmos os diferentes fenômenos em jogo a partir de uma mesma ótima homogênea e universalizante. Pois « há muito mais regimes de conhecimento e de cultura do que supõe nossa vã imaginação metropolitana » (Cunha, 2009 : 329). Portanto, como diria Hobsbawm, o patrimônio também constitui uma invenção de tradição.

12A perspectiva multicultural, apesar de sua intenção democratizante, não traz grandes mudanças à representação metonímica entre um bem e seu povo, que continua calcada na idéia de propriedade. Apenas desloca o objeto da dimensão cultural : a cultura não é mais pensada no singular e nem como pertencente a todos os cidadãos de uma mesma nação, indistintamente. Ela continua remetendo a um certo grupo de pessoas, só que numa outra escala, a microssociológica. Mas a lógica se mantém, ainda que num outro plano : a cultura – ainda que cada povo « tenha » a « sua » e que ela seja singular e única em cada localidade – continua sendo pensada a partir de certas características comuns, universais : ela ainda corresponde à « qualidade original », à « essência » de um povo, o que legitima a relação de propriedade deste perante aquela, e que, no mesmo movimento, reforça e cristaliza as diferenças, que passam a ser entendidas como « diferenças culturais ».

13Pressupõe-se que, para além das diferenças, todas as culturas humanas compartilhem esses e outros tantos princípios comuns, o que já é uma maneira de impor uma certa representação sobre as outras. Pois como ter certeza de que, bem perto de mim ou do outro lado do planeta, outros povos se relacionam com o mundo de acordo com parâmetros definidos por uma sociedade moderna e ocidental ? Não seria esse um terrível jogo de forças cujo vencedor já está previamente determinado ? Mas a profecia se auto-verifica : cada vez mais, os diferentes povos do mundo afora se pensam, se organizam e fazem suas reivindicações em nome de suas « diferenças culturais ». A cultura se torna um argumento político, uma arma dos fracos, num fenômeno de imaginação metropolitana em que se apagam as diferenças entre regimes (Cunha, 2009).

14O cumprimento da profecia não se dá por acaso e nem por um movimento teleológico do destino. Há uma série de dinâmicas, que atuam numa escala global – através de órgãos como a UNESCO, entre outros – , ramificadas através de redes que chegam aos lugares mais recônditos, que levam os indivíduos a se pensarem e se organizarem de tal modo. Muitas vezes, esses processos se traduzem sob a forma de dispositivos legais que contribuem para a criação de novos sujeitos jurídicos e políticos. As atuais políticas públicas voltadas para a cultura e o patrimônio (dentro das quais incluímos às que se destinam à capoeira) integram essa dinâmica. Elas fornecem novos meios de atuação através dos quais a sociedade deve se organizar para reivindicar seus direitos. Nesse movimento, criam categorias e modelos universais a partir dos quais os diferentes « povos » e suas diferentes « culturas » têm que se adequar se quiserem ser escutados.

O Registro da Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil

15No caso do Brasil, o processo de homogeneização e de ressignificação produzido pelas políticas de patrimônio se iniciou oficialmente com o decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que criou o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (atual IPHAN). Portanto, sob o governo autoritário e nacionalista de Getúlio Vargas, em pleno Estado Novo, procurava-se símbolos que expressassem a essência da nação, seu passado glorioso e seu futuro promissor. Na época, os bens que ganharam o status de patrimônio e o poder de representar a nação nesses termos referiam-se sobretudo à herança luso-brasileira, materializada na arquitetura barroca.

16A partir do fim de 1970, a categoria patrimônio expandiu-se e veio a incluir documentos, antigas tecnologias, artesanato, festas, material etnográfico, várias formas de arquitetura e arte popular, religiões populares, etc. A flexibilização da noção culminou com o decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. O patrimônio passou a ser pensado a partir de características entendidas como dinâmicas e relacionais, ou seja, como profundamente inserido nos diferentes domínios da vida cotidiana dos grupos que o veiculam e, ao mesmo tempo, passível de mudança. Entretanto, Aline Canani (2005) indaga, de modo muito pertinente : « qual é o procedimento adotado pelo Iphan para identificação e registro dos bens considerados patrimônio nacional ? » De acordo com as informações fornecidas pelo próprio Iphan :

[...] O Tombamento, como qualquer outra Lei Federal, Estadual ou Municipal, estabelece limites aos direitos individuais com o objetivo de resguardar e garantir direitos e interesses de conjunto da sociedade. Não é autoritário porque sua aplicação é executada por representantes da sociedade civil e de órgãos públicos, com poderes estabelecidos pela legislação.

[...] O Tombamento é uma ação administrativa do Poder Executivo, que começa pelo pedido de abertura de processo, por iniciativa de qualquer cidadão ou instituição pública. Este processo, após avaliação técnica preliminar, é submetido à deliberação dos órgãos responsáveis pela preservação. Caso seja aprovada a intenção de proteger um bem cultural ou natural, é expedida uma Notificação ao seu proprietário. A partir desta Notificação o bem já se encontra protegido legalmente, contra destruições ou descaracterizações, até que seja tomada a decisão final. O processo termina com a inscrição no Livro Tombo e comunicação formal aos proprietários. Adaptado da publicação Tombamento e Participação Popular, do Departamento do Patrimônio Histórico, do município de São Paulo.

17Ao longo do percurso dessa legislação, foram realizadas alterações no sentido de garantir uma maior participação popular no processo de tombamento. Entretanto, podemos observar que o procedimento atual garante aos « técnicos » a avaliação da pertinência dos pedidos e decide através de « deliberação » dos órgãos responsáveis. Ainda que não seja um ato autoritário, envolve o uso de um poder de decidir ou deliberar que é hierárquico, e repousa nas mãos dos « órgãos competentes » (Canani, 2005 : 172-173).

18O procedimento que culminou com o registro da capoeira como bem imaterial não foi muito distinto do acima mencionado. Em 15 de julho de 2008, atendendo as solicitações de Gilberto Gil, a capoeira foi registrada como bem cultural imaterial do Brasil3. Mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso que ela passasse por um longo processo de inventário, ao fim do qual uma equipe de « especialistas » se reuniria para avaliar a pertinência do pedido do registro. Tal iniciativa coube ao Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, órgão vinculado ao IPHAN e situado no Rio de Janeiro.

19Através do CNFCP, era preciso montar uma equipe de pesquisadores que iriam atuar junto aos capoeiristas do país, realizando um levantamento das atividades que comporiam um dossiê. Muitos pesquisadores recusaram esse papel, possivelmente receosos do desgaste em suas relações com os capoeiristas e das inúmeras dificuldades que todo o levantamento acarretaria. Afinal, como registrar e realizar um dossiê sobre uma atividade tão diversificada e espalhada por todo o território nacional e o mundo, com múltiplas possibilidades de entendimento sobre si própria4? Como dar conta das hierarquias internas, das novas associações e dissidências que se tecem no dia a dia da capoeira ? Como não levar em conta a vontade de reconhecimento dos mestres ? Não sei exatamente quais foram as questões levantadas pela equipe encarregada dessa missão, apesar de ter a certeza de que foram muitas. Essas são apenas algumas das que eu, pessoalmente, faço.

20Depois de algumas recusas, o CNFCP contactou o Laced – Laboratório de Pesquisas em Cultura, Etnicidade e Desenvolvimento do Museu Nacional/UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Este laboratório procurou um antropólogo e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) que tinha algum conhecimento do mundo da capoeira. Este, por sua vez, convidou um historiador que também era capoeirista. Assim, os coordenadores da equipe responsável pela elaboração do dossiê foram definidos. Mas eles precisavam definir alguns critérios, diante da tamanha diversidade da prática da capoeira no Brasil e no mundo. E o critério definido – muito pertinente, se considerarmos a importância do historiador dentro da equipe –, diante da impossibilidade de fazer um levantamento sobre a prática da capoeira em todo o território nacional, foi o de selecionar as localidades onde esta atividade possuía uma maior relevância histórica : Rio de Janeiro, Salvador e Recife. O antropólogo e, sobretudo o historiador, acionaram suas redes de conhecimento no meio acadêmico e no mundo da capoeira e, aos poucos, foram montando uma equipe transdisciplinar responsável pelo levantamento dos dados em cada uma das cidades contempladas. A elaboração dessas redes também levou ao contato com os mestres e praticantes entrevistados para a realização do dossiê (Cid, 2010). A proposta da equipe era de organizar encontros com capoeiristas dessas três localidades para, em cada uma delas, ouvir os seus desejos e as suas necessidades e apontar caminhos para as possíveis futuras políticas públicas destinadas a essa atividade. Foram esses encontros que nortearam as recomendações que integram o Plano Salvaguarda da Capoeira. São elas :

21A) O reconhecimento do notório saber dos mestres de capoeira pelo Ministério da Educação ;

22B) Um plano de previdência especial para os velhos mestres de capoeira ;

23C) O estabelecimento de um programa de incentivo da capoeira pelo mundo.

24Por mais democráticas que fossem as intenções e as ações dos coordenadores da equipe, a iniciativa de registrar a capoeira como patrimônio partiu do Estado, e não dos capoeiristas. Ela foi conduzida a partir de alguns de seus representantes legais e de seus « técnicos » e « especialistas », e a estes também coube o poder de decidir sobre a pertinência do seu registro e de definir em que termos ele se daria5. E ainda cabe ao Estado, através de seus representantes legais, definir as políticas públicas que serão destinadas ao mundo da capoeira.

25Um procedimento análogo foi adotado em seguida, quando da criação, em 22 de julho de 2009, do Grupo de Trabalho Pró Capoeira (GTPC), através da Portaria nº 48, pelo IPHAN, Fundação Palmares e Ministério da Cultura. De acordo com o próprio site do IPHAN, « este grupo é formado por representantes de unidades do Ministério da Cultura e tem a finalidade de estruturar as bases do Programa Nacional de Salvaguarda e Incentivo à Capoeira (Programa Pró - Capoeira) » (www.iphan.gov.br).

26Em 6 de julho de 2010, o GTPC realizou uma chamada pública para contratar

Dez consultores especialistas em capoeira, sendo dois por região. Os consultores se responsabilizarão pela identificação de pessoas que sejam referências e que tenham representatividade para participar dos encontros ; pela relatoria e consolidação dos resultados dos encontros ; pela coordenação dos debates, mesas e grupos de trabalho ; pela elaboração de textos e documentos referenciais. Nesse sentido, o GTPC e a Oscip Intercult estão fazendo uma chamada de currículos para o seguinte perfil :

-Nível superior em qualquer área com experiência comprovada em pesquisa no campo da capoeira (www.iphan.gov.br).

27Ou seja, há uma inversão da hierarquia característica do mundo da capoeira, em que são os « técnicos » e « especialistas » de « nível superior » que conduzem o processo. De acordo com as novas regras definidas pelo IPHAN e órgãos afins, deveriam ser realizados três grandes encontros regionais – no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, Sul e Sudeste – sob a responsabilidade dos « consultores » selecionados na chamada pública mencionada acima, com a participação dos diferentes capoeiristas de cada região. Tais reuniões visavam a elaboração de políticas publicas de incentivo e salvaguarda da capoeira a partir das demandas levantadas pelos praticantes. No entanto, esses encontros geraram uma série de conflitos e divergências entre os capoeiristas, pois requeriam que certas decisões consensuais fossem tomadas por praticantes que não necessariamente compartilham o mesmo entendimento sobre o que seja a capoeira. Os conflitos adquiriram tamanha proporção que acarretaram na saída de importantes mestres e capoeiristas das reuniões, por discordarem dos rumos que estas estavam tomando. Esses mestres e capoeiristas chegaram a redigir cartas abertas com denúncias que circularam pela Internet. Voltamos à questão da « imaginação metropolitana » que requer uma percepção unificada e universalizante de uma prática múltipla e diversificada, em que cada mestre acredita praticar a sua arte da maneira mais correta e mais de acordo com o que acredita serem os seus fundamentos.  

28Também cabe notar que a capoeira foi registrada como patrimônio do Brasil – processo em que se recria, mais uma vez, uma determinada relação de propriedade entre um certo bem cultural e um grupo que supostamente o representa. Tal iniciativa deixou alguns descontentes, os que gostariam que a capoeira fosse reconhecida como um patrimônio afro-descendente – o que já levaria a uma outra relação de propriedade, em que o grupo representado seria restrito a um núcleo menor de cidadãos brasileiros6. Apesar da perspectiva multicultural, adotada recentemente pelo governo brasileiro, a dimensão nacionalizante da capoeira nunca desapareceu dos discursos oficiais. Elas convivem hoje, lado a lado, criando modos singulares de articulação.

29A instrumentalização do patrimônio (material e imaterial) pelo Estado e por seu órgão representante para essas questões específicas, o IPHAN, conduz à elaboração de construtos legais e institucionais, através de leis e outras iniciativas voltadas para a sua preservação. Cria-se um dispositivo de direitos que altera a maneira pela qual as expressões culturais em questão são pensadas e praticadas e, ao mesmo tempo, dá voz e poder a novos atores que, até então, não participavam, ou não tão diretamente, dessas atividades e nem de suas discussões (Steil, 2001).

30Refiro-me, no caso da capoeira, não apenas ao registro em si, mais aos projetos e editais a ele relacionados, como o Capoeira Viva7, entre outros. Eles requerem que a população se organize em associações da sociedade civil, com estatutos aprovados e enquadrados num formato legal que lhes garanta representatividade. Só assim poderão se beneficiar de inúmeras políticas públicas e editais – isso, sem entrar no mérito da questão da concorrência, uma vez que, nos editais, alguns « ganham » e outros tantos « perdem », ou seja, não é algo igualmente distribuído por todos, apenas para os « vitoriosos ». E mesmo esses não o são por muito tempo, já que os benefícios dos editais costumam ter duração limitada e que um projeto implementado por um certo grupo de pessoas terá grande dificuldade de ir além do tempo de vida que lhe é garantido pelo financiamento de que se beneficia. É o que ocorre com diversos Pontos de Cultura8 e ocorreu com os projetos beneficiados pelo Capoeira Viva.

31Podemos pensar ainda em outros procedimentos que, voluntariamente ou não, contribuem para uma representação homogeneizante e coletivizadora da capoeira : as fichas padronizadas do Cadastro Nacional da Capoeira, disponíveis nos sites do IPHAN, do Ministério da Cultura e da Fundação Palmares ; as fichas padronizadas do INRC – Inventário Nacional de Referências Padronizadas – , que norteiam a « equipe técnica » em seu levantamento das características do bem a ser tombado.

Considerações finais

32Não pretendo, com essas análises, julgar se os novos rumos tomados pela capoeira são bons ou ruins. Seria uma atitude excessivamente simplista diante de um processo de tamanha complexidade. Nem tampouco condenar as mudanças por supostamente descaracterizá-la. As transformações de que a capoeira é alvo em seu cotidiano não se devem, obviamente, apenas ao advento das novas políticas públicas que lhe são destinadas. E tampouco às antigas relações, geralmente autoritárias, entre os capoeiristas e o poder público. Como antropóloga, não acredito em culturas mais ou menos tradicionais ou descaracterizadas. Acho que a mudança faz parte das próprias dinâmicas culturais, da vida e do mundo, e é claro que isso se intensifica quando este é altamente informatizado e globalizado. Não considero pertinente julgar as práticas sociais em termos de uma dicotomia entre o autêntico e o inautêntico, pois acho que ela só serve para recriar e legitimar hierarquias, inclusive dentro do mundo da capoeira. Pois, como diz Manuela Carneiro da Cunha, « a autenticidade é uma questão indecidível » (Cunha, 2009 : 343), e eu acrescentaria, inspirando-me no antropólogo Howard Becker, tudo depende de « de que lado estamos ».

33Portanto, não se trata de simplesmente decidir se tal medida (o registro) foi boa ou ruim para a capoeira e para os capoeiristas, mas de analisar os seus processos, de ficar atento às suas transformações. Ao longo desse artigo, procurei refletir sobre alguns efeitos do registro da capoeira como patrimônio imaterial no próprio mundo da capoeira. Dediquei especial atenção às tensões entre os entendimentos universalizantes que perpassaram as ações do Estado voltadas para o seu registro e as leituras particularistas que caracterizam o universo dos capoeiristas. Acredito que no processo que deu origem ao registro, criaram-se expectativas de atitudes e entendimentos universais acerca da capoeira que dificilmente podem ser atendidas pelos capoeiras e que merecem ser alvo de reflexão9. Ainda que as intenções do Estado sejam as melhores, o mais importante é ver em que medida elas realmente estão de acordo com as necessidades dos capoeiristas.Pois, se me é permitido responder à pergunta que dá origem a esse artigo – de quem é a capoeira ? – , e já que a relação de « propriedade cultural » parece ser a grande porta a abrir as vias de diálogo e reivindicação, creio que ela é, antes e acima de tudo, daqueles que lhe dão vida e que a ela se dedicam, com paixão e com fé, no seu dia-a-dia : os capoeiristas.

Bibliographie   

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CID, Gabriel, O registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil: um estudo de caso das políticas recentes de preservação do IPHAN. Monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

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VASSALLO, Simone Pondé, « O registro da capoeira como patrimônio imaterial : novos desafios simbólicos e políticos », in Educação Física em Revista, vol. 2, nº 2, 2008.

Sites consultados :

www.iphan.gov.br, em agosto de 2010.

www.cultura.gov.br/scripts/discursos.idc ?codigo =1143, em setembro de 2008.

Notes   

1  Uma primeira reflexão sobre o tema foi por mim desenvolvida em Vassallo (2008). Agradeço a colaboração dos meus então bolsistas de iniciação científica, Natasha da Veiga Ferreira e Gabriel Cid (CNPq e UERJ, respectivamente), no preparo desse e de outros tantos trabalhos sobre o tema.

2  O IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – é o órgão nacional voltado para a proteção do patrimônio e é vinculado ao Ministério da Cultura.

3  Isso não significa dizer que as iniciativas em prol do registro da capoeira como patrimônio imaterial tenham se iniciado nesse momento, pois já havia discussões a esse respeito entre certos grupos de praticantes.

4  Menciono aqui umas poucas – porém significativas – possibilidades de entendimento da capoeira entre os capoeiristas : há grupos que consideram-na prioritariamente uma atividade esportiva e passível de competições, enquanto há outros que privilegiam a sua dimensão étnica, afrodescendente, para quem a capoeira é uma expressão cultural (e não um esporte) que contribui para a construção positiva de uma identidade negra. Neste último caso temos a afirmação de uma dimensão política da capoeira, que se torna um instrumento na luta contra a discriminação racial.

5  É interessante notar que o registro do samba-de-roda como patrimônio imaterial também ocorreu em condições semelhantes, ou seja, de cima para baixo, através de uma iniciativa de representantes do poder público, e não dos praticantes da atividade em questão (Alencar, 2005).

6  Dentre os que defendem a capoeira como um patrimônio afrodescendente – e não brasileiro – , podemos mencionar praticantes de capoeira angola que integram a chamada « Escola Pastiniana ».

7  Trata-se de um programa desenvolvido nos anos 2007 e 2008 pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, destinado, através de editais, a apoiar professores e pesquisadores de capoeira por todo o Brasil.

8  Programas também criados sob a gestão de Gilberto Gil, voltados para o apoio e o incentivo à cultura popular e com duração de três anos.

9  Optei por privilegiar o momento de elaboração do registro e de não mencionar os conflitos que se sucederam ao registro em si. Estes se relacionam ao conteúdo do Plano de Salvaguarda e trazem inúmeros e novos conflitos para os capoeiristas, como os que se relacionam à possibilidade de aposentadoria para os mestres.

Citation   

Simone Pondé VASSALLO, «De quem é a capoeira ? Considerações sobre o registro da capoeira como patrimônio cultural imaterial do Brasil», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Capoeiras – objets sujets de la contemporanéité, mis à  jour le : 16/12/2012, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=580.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Simone Pondé VASSALLO

Simone Pondé VASSALLO est Docteure en Anthropologie Sociale (EHESS, Paris) et Professora Adjunta en Anthropologie à l'Institut Universitaire de Recherches de Rio de Janeiro (IUPERJ,Brésil). Elle a un intérêt particulier pour les thématiques portant sur les relations ethniques et raciales dans leur interface avec les champs de la mémoire et du patrimoine. Elle est l'auteure de plusieurs articles sur les processus de construction des identités ethniques, raciales et nationales dans la capoeira de Rio de Janeiro et de Paris, et plus récemment, sur son registre en tant que patrimoine immatérial. Elle mène actuellement une recherche sur le processus de patrimonialisation de la culture afro-bréslienne dans la zone portuaire de Rio de Janeiro.