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« De malandro a cidadão » : políticas culturais na Associação Capoeira de Rua Berimbau, Rio Grande do Sul

Lucrecia Raquel GRECO
décembre 2012

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.524

Résumés   

Résumé

Les capoeiristes de l’Associação Capoeira de Rua Berimbau - Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil - cherchent à dissiper le mythe du capoeiriste « marginal » ou « malandro » qui, selon eux, reste actif aujourd’hui dans l’imaginaire du public profane de la capoeira. Depuis sept ans, les capoeiristes, en majorité des hommes des classes populaires, s’identifient à une capoeira de Rua (de rue) dédiée à la formation de citoyens. Ils revendiquent également la pratique comme une forme de lutte, non seulement au sens physico-technique (un art martial) mais également au sens sociopolitique, contre différentes formes d’oppression socio-économique et en faveur de l’inclusion sociale. Au cours de ce processus, le public du groupe a changé, avec l’incorporation d’un plus grand nombre de femmes, et la priorité de l’entrainement a été modifiée, l’objectif d’efficacité dans la lutte étant relativement abandonné au profit d’une plus grande importance accordée à l’action de jouer (jogo). La proposition de cet article est de comprendre ces signifiants définis comme prioritaires dans l’appropriation de la pratique de capoeira au sein de l’Association, en considérant les positions des membres du groupe concernant les structures de genre, classe sociale et race-ethnicité, ainsi que les positionnements qu’ils adoptent comme capoeiristes dans une ville « blanche » du Brésil. Au cours de cette description et analyse, nous essaierons de comprendre comment les sujets capoeiristes se positionnent dans les luttes pour la définition de politiques culturelles spécifiques.

Abstract

The capoeirists of Associação CapoeiradeRuaBerimbau - Santa Maria city, Rio Grande do Sul, Brasil - contest in their practice the myth of the ‘marginal’ or ‘malandro’ capoeirist which, in their view, has been operating in the lay public. Over the last seven years, the capoeirists (mostly men of lower social classes) have been identifying themselves with a capoeira de Rua (street capoeira) aiming to train ‘citizens’. They also claim the practice as a struggle, in a technical sense (as a martial art) and in a social-political sense, as a struggle against different forms of socio-economic oppression and for social inclusion. During this process the public of the group has changed, receiving more women, and changing the training focus, relatively leaving away the objective of struggle efficiency and giving more importance to the action of playing ‘jogo’. The purpose of this article is to understand the signifiers that were chosen in the appropriation of capoeira practice by the group, considering the structural positions of the group members (class, gender and race-ethnicity) and the positions adopted by them as capoeirists in a white city of Brazil. Along the description and analysis we will understand how the capoeirists define their positions in the struggles for specific cultural policies.

Resumo

No decurso da sua prática, os capoeiristas da Associação Capoeira de Rua Berimbau -da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil- procuram contestar o « mito » do capoeirista « marginal » ou « malandro » que, segundo eles, opera até hoje no público « leigo » em capoeira. Nos últimos sete anos eles vêm se identificando com uma capoeira que forma « cidadãos » e reivindicam a prática como forma de luta, não apenas no sentido físico-técnico (como prática de uma arte marcial) mas também num sentido sociopolítico, como luta contra formas de opressão socioeconômica e pela inclusão social. Ao longo deste processo, o publico do grupo tem mudado com a incorporação de um numero mais grande de mulheres. Por outra parte, a prioridade do treino foi modificada, sendo o objetivo da eficacia na luta relativamente abandonado em favor duma maior importância no jogo. A proposta deste artigo será compreender os significantes priorizados na apropriação da prática de capoeira na Associação, considerando as posições dos membros do grupo no que diz respeito as estruturas de gênero, classe e raça-etnicidade ; e os posicionamentos por eles adotados como capoeiristas numa cidade « branca » do Brasil. No decurso da descrição e da analise buscaremos compreender como os capoeiristas se colocam nas lutas pela definição de políticas culturais.

Index   

Index de mots-clés : Capoeira de rua, citoyenneté, politiques culturelles, race, classe sociale.
Index by keyword : Capoeira de rua, citizenship, cultural policies, race, social class.
Índice de palavras-chaves : capoeira de rua, cidadania, políticas culturais, gênero.

Texte intégral   

« (...) Antigamente, quem era capoeirista era malandro, ficava no boteco da esquina tomando traguinho, jogando por jogar, daí botava uma navalha no pé, cortava um, cortava outro, daí foi criando todo esse mito (...) », (Perigoso, capoeirista da Associação Capoeira de Rua Berimbau, 11 de abril de 2007)

1No decurso de sua prática, os capoeiristas da Associação Capoeira de Rua Berimbau – da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil – procuram desconstruir o « mito » do capoeirista « marginal » ou « malandro »1 que, segundo eles, opera até hoje no público « leigo » em capoeira. Nos últimos sete anos eles vêm se identificando com uma capoeira que forma « cidadãos » e reivindicando a prática como forma de luta. Essa luta é entendida não apenas no sentido físico-técnico (como prática de uma arte marcial), mas também num sentido sociopolítico, como luta contra formas de opressão socioeconômica e pela inclusão social.

2A proposta deste artigo será compreender as políticas culturais desenvolvidas na Associação, considerando as posições e posicionamentos dos capoeiristas no que diz respeito às estruturas de gênero, classe e raça-etnicidade2, além da particular apropriação da capoeira por parte do grupo no contexto de uma cidade « branca » do Brasil.

3Desenvolvi o trabalho de campo com o grupo entre os anos de 2005 e 2008, frequentando e participando dos treinos, das rodas, dos eventos que o grupo assistia e de diversas instâncias de reunião dos capoeiristas, tais como treinos informais, festas e reuniões organizativas de atividades do grupo. A pesquisa foi desenvolvida por meio da observação participante, da realização de entrevistas abertas e semi estruturadas, do registro audiovisual e da « participação observante » (Wacquant, 2002).

O contorno da roda. Algumas considerações teóricas

4A presente análise emerge de uma perspectiva que considera a prática da capoeira como uma performance: uma prática restaurada e reatualizada em cada repetição (Schechner, 2000, p. 13). As performances são constitutivas da realidade social, e não meras « representações » ou « sínteses » de um processo social. Desde esta perspectiva penso que na prática de um determinado estilo de capoeira, com determinados significantes associados e em contextos específicos, os capoeiristas se posicionam como coletivo produzindo fatos políticos na sua prática cultural, ou “políticas culturais” na acepção de cultural politics (Ochoa Gautier, 2003, p. 76-7)3.

5A política, no sentido aqui adotado, não se limita às disputas em torno do controle estatal institucional, mas envolve micropolíticas que se desdobram em diversas modalidades de ação humana, como as práticas categorizadas como « artes » e « performances » (Turner, 1992, p. 110) que, na dinâmica capitalista, teriam sido investidas de uma aura de neutralidade ou desinteresse político (Araújo, 2010, p. 11). A prática da capoeira faz parte destas micropolíticas e os grupos de capoeira se constituem neste sentido em atores políticos. Ao mesmo tempo, e em tensão com esta aparência de neutralidade, a capoeira vem exibindo sua politicidade ao longo da sua historia, sendo que desde sua emergência no período escravocrata até a atualidade, foi objeto de proibições e reivindicações por parte do estado e da sociedade civil. Na atualidade não é incomum que a prática de um grupo de capoeira implique um posicionamento político bastante explícito. Esses posicionamentos se observam através das narrativas históricas escolhidas, das letras das canções, e dos espaços em que os grupos decidem realizar suas rodas. Também, se percebem mais explicitamente nos diversos grupos de capoeira ligados a diversos setores de militância negra, ou no trabalho em projetos sociais, como no caso aqui analisado.

6Considero que a atuação política dos capoeiristas da Associação está no campo das políticas chamadas « culturais », devido ao fato da natureza da atividade do grupo ser focada na prática de capoeira, na constituição de sujeitos cidadãos, e na construção de uma « filosofia de vida ». Com « políticas culturais » não me refiro ao conjunto de ações assim denominadas pelos organismos estatais, mas às práticas de poder desenvolvidas pelos diversos atores sociais no âmbito da cultura. Estas práticas se realizam como processos de disputa pela hegemonia, em que se envolve o Estado, os organismos multilaterais (principalmente a UNESCO), o setor empresarial, os movimentos sociais e outros atores sociais (Garcia Canclini, 1987 ; Escobar et al. 1991). As ações de poder na cultura não se restringem a disputas por políticas públicas ou práticas institucionais, mas incluem também modos de fazer cotidianos, mudanças « na cultura » e « da » cultura (Chauí, 2006, p. 10). Nesse sentido, as práticas de poder na cultura não necessariamente operam com racionalidades políticas canonizadas (Hopenhayn, 2003, p. 3). Nas práticas estéticas, como a capoeira, as políticas culturais se desenvolvem nas formas e no conteúdo: nos aspectos formais do próprio gênero e nas dinâmicas sociais a partir das quais esta forma é comunicada (Ochoa Gautier, 2003, p. 77)4.

7Por último, para pensar os posicionamentos dos sujeitos no campo das políticas culturais, considero as « identificações » e não as « identidades ». Escolho o primeiro por ser um termo processual e ativo, que permite pensar como se produzem práticas e discursos nativos, sem dar por assentada a existência de « identidades » reificadas (Brubaker e Cooper, 2001, p. 43-46).

Uma luta afro-brasileira no coração do Estado gaúcho

8O Estado do Rio Grande do Sul poderia identificar-se como um Brasil « branco », no sentido de que a população negra, no ano de 2005, constituía 15, 5% do total (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, citada em SEADE5, 2012), a qual pertencia, geralmente, aos setores de mais baixa renda (Oliven, 1999; Oro, 2002)6. Por sua vez, as instituições governamentais, os meios de comunicação massivos e a indústria publicitária do estado têm priorizado significados ligados ao gauchismo7 e, em segundo lugar, às colônias europeias mais tardias. Os setores médios e altos do Rio Grande do Sul tendem a se identificar com essas duas tradições, enquanto concebem as manifestações culturais afrodescendentes como próprias do Brasil de São Paulo para cima. No entanto, estas últimas são fortemente presentes no Estado, especialmente entre os setores populares8.

9Localizada no centro geográfico do Estado, a cidade de Santa Maria conta com uma população aproximada de 300.000 habitantes. Dentre eles, uma média de 15.000 são estudantes universitários e 30.000 militares, que residem na cidade de forma temporária. Nesta cidade « gaúcha », « branca » e com uma importante parte da população flutuante, a Associação Capoeira de Rua Berimbau vem consolidando e expandindo seu trabalho baseado na prática de capoeira desde 20039.

10A maioria dos capoeiristas que participa regularmente da Associação (aproximadamente trinta pessoas) pertence aos setores socioeconômicos médios e baixos que moram na periferia da cidade de Santa Maria. Interessa apontar que entre 2005 e 2008, aproximadamente, 70 % eram homens entre 18 e 30 anos, cerca de 30 % se consideravam negros, 20 % tinham realizado parte da carreira militar e 15 % possuíam estudos universitários. Assim, a Associação se caracterizava por uma predominância de público masculino, advindo de setores populares. Por último, todos os membros adultos do grupo eram, nesse período, pioneiros na prática de capoeira em suas famílias, fato que assinala a importância da ação deste e outros grupos na expansão da capoeira na cidade nas últimas décadas.

11Ostreinos dogrupoforamsempregratuitos para o público e os capoeiristas quase nunca foram pagos por coordenar os treinos da Associação10.Trêscapoeiristasreceberamumestipêndioduranteodesenvolvimentodoprojetomunicipal « Gingadacidadania ». Este projeto foicriadoepromovidopeloMestredaAssociação e funcionou entre 2006 e 2008, no FórumpolíticosocialdomunicípiodeSantaMaria, no períododogovernomunicipaldoPartidodosTrabalhadores(2001-2008).Atravésdoprojeto,ogrupocomeçoua ministrar oficinas regulares emváriasescolaspúblicas, além de ter umapresençamais frequenteemeventos « culturais » municipais (comemoraçõesoficiais,festivais, etc.). Também foi comum nesse período a organização de rodas e conversas em escolas públicas para implementar a lei nº 10.639/200, que torna obrigatóriooensinoda História e CulturaAfricana e Afro-brasileirana educação básica.

12OsintegrantesdaAssociaçãoCapoeiradeRuaBerimbau descrevem acapoeira, principalmente,como uma « arte marcial ritmada », « afro-brasileira », ou « negra ». Por um lado, priorizam a dimensão de luta ou arte marcial sobre a dança, a teatralização, o esporte ou o jogo na performance de capoeira. A dimensão marcial se expressa na movimentação corporal do grupo, caracterizada como « objetiva », focada na « eficácia do golpe », e, precisamente por isso, estilisticamente mais afim com a capoeira Regional de que com a Angola11, cujos movimentos seriam mais « teatralizados », focados no jogo e menos centrados na eficácia dos golpes (Araújo, 2004 ; Assunção, 2005 ; Vassallo, 2006 ; Barros de Castro, 2008)12. Porém, a Associação define seu estilo como « capoeira de rua », uma capoeira « mais livre », que, segundo os capoeiristas, não tem uma conexão direta às escolas de perfil mais « ortodoxo », como seriam às de capoeira Angola ou Regional, as quais adotam apenas um desses estilos no jogo. No grupo, o treino da movimentação se assemelha ao estilo Regional, enquanto nas rodas, joga-se Angola e Regional com a instrumentação e movimentação de acordo com cada estilo13. A capoeira de Rua do grupo se diferencia da capoeira contemporânea (que também inclui todos os estilos), enfatizando o perfil de « trabalho social » : o Mestre do grupo -conhecido como Mestre Militar, negro de quarenta anos e assessor duma vereadora da cidade- comenta que enquanto a capoeira contemporânea é praticada em academias de ginástica, a Associação procura manter as rodas na rua, considerada por ele o « habitat natural da capoeira ».

13Os membros da Associação destacam que a capoeira se diferencia do resto das artes marciais pela presença da música, pela brincadeira na roda, pela relativa ausência de toque ou contato físico no jogo e pela sua origem afro-brasileira, que afeta tanto a movimentação (a ginga e a manha do jogo), quanto os sentidos históricos da prática (a criação da capoeira pelos escravos). Os integrantes da Associação também consideram que, diferentemente de outras « artes marciais », a capoeira está « menos burocratizada », pois a relação entre mestres, professores e alunos, seria mais fluída e menos formalizada e hierárquica, em relação a outras artes marciais, as quais muitos deles já praticaram. Como assinala Perigoso (capoeirista do grupo, negro, 33 anos, motorista de ônibus) : « ...nem por isso deixa de ter o respeito, mas o aluno se sente mais livre pra chegar e perguntar as coisas sem aquele limite de “Oh mestre !, Oh professor” Entende ?.. » (11 de abril de 2007). Considero que nesta decisão de manter este tipo de tratamento interpessoal na prática, os capoeiristas desenvolvem uma política de horizontalidade nas relações de ensino e aprendizagem da capoeira, em que as lideranças se constituem não só a partir da experiência no jogo, mas a partir da eleição delas por parte dos alunos.

14Asidentificaçõescomaafro-brasilidade dentro do campo da capoeira na cidade gaúcha de Santa Maria apresentamsuascomplexidades.AAssociaçãonasceujustamentequando, no ano de 2003, trêsprofessoresresolveramse afastarde um grupodecapoeiraAngola,quefuncionavano Museu Afro Brasileiro dacidade14. Os capoeiristas contam que decidiram sair do Museu, por considerar que aí se exercia uma « discriminação contrária » com os capoeiristas não negros. Nesse movimento, os capoeiristas da Associação optaram por se identificar com uma capoeira mais « popular » do que « negra » : reconhecendo também a origem afro-brasileira da prática, apesar do fato que o lema político do grupo estava centrado na idéia de que todas as pessoas podem treinar e jogar. Ao mesmo tempo, a escolha pela identificação com o « popular » pode ser compreendida pela própria composição do grupo, em que menos da metade dos capoeiristas se consideram negros e, a maioria, pertence às classes de baixa renda ou « populares ». Por último, a escolha de não se identificar com a militância negra é coerente com o estilo de jogo que o grupo adotou, mais ligado à capoeira Regional, identificada como « nacional »queà capoeiraAngola, identificada sobre todo com a « afro-brasilidade » (BarrosdeCastro,2008).

Uma luta do « povo » numa prática afro-brasileira

15Os capoeiristas da Associação definem sua prática como uma « luta ». Nos treinos, nas rodas e nas entrevistas, os capoeiristas convergem em ressaltar dois aspectos desta noção de “luta”. Um deles é o sentido físico-técnico, presente na mencionada definição e prática da capoeira como arte marcial. O outro sentido é o de luta « social » : segundo eles, a capoeira teria sido uma forma de luta contra diversos tipos de opressão ao longo da história, desde seu surgimento como « resistência à escravidão », até o seu uso atual em alguns grupos, como forma de inclusão social e integração à « cidadania ». Como argumenta o Mestre Militar, a capoeira já teria sido uma luta dos escravos negros, mas hoje « (...) [A luta] é outra luta, não é contra a opressão (dos negros), é a favor da inclusão social (...) » (15 de junho de 2008). Assim, os capoeiristas « abrem o jogo » para o « povo » (termo que, no contexto do grupo refere-se principalmente aos setores populares). O lema do grupo, nas filipetas de divulgação, camisetas e apresentações públicas, vem sendo há seis anos « a capoeira é do povo, é da gente ». A Associação mantém uma política de inclusão de setores marginalizados na prática, enfatizando a importância das lutas dos oprimidos na constituição da capoeira.

16A acessibilidade do « povo » na capoeira não é gratuita: requer ela que o sujeito possa acompanhar a « filosofia » da capoeira como luta nos dois sentidos (de luta física e sociopolítica), e se interesse em conhecer e estudar as raízes da prática. Assim os capoeiristas que se comprometem no grupo, são cobrados para pesquisar estilos de jogo, instrumentação, história da capoeira, de diversas performances afro-brasileiras (como jongo, maculelê ou samba de roda), elaborar os cordões de graduação15, confeccionar e executar instrumentos, organizar eventos, promover e assistir as rodas e acompanhar os treinos nos bairros populares. Considero que essas exigências, direcionadas a quem se incorpora no grupo, são parte de uma política cultural específica, orientada na formação de capoeiristas « cidadãos », responsáveis e cientes dos seus atos.

17A partir de uma concepção de luta « pela inclusão » os capoeiristas se articularam durante dois anos com a prefeitura local, no referido projeto « Ginga da Cidadania ». Esta articulação pode ser pensada como uma estratégia de legitimação frente aos diversos setores sociais, assim como uma defesa da prática de rodas em espaços públicos da cidade. A identificação com o significante « cidadão » se relaciona à afinidade do mestre e de alguns membros do grupo com as políticas culturais de « democracia participativa » (Garcia Canclini, 1987), que promovem a prática de manifestações da « culturapopular »emodosde gestão, ensino e aprendizagem não hierárquicos. Estas políticas são promovidas na cidade de Santa Maria por setores do Partido dos Trabalhadores (PT), em qual alguns capoeiristas militam. Assim, mesmo sem intervir explicitamente nas campanhas políticas, nem introduzir diretamente discursos partidários nos treinos nem nas rodas, a Associação manteria uma relação com os militantes e funcionários locais do PT que se posicionam a favor deste tipo de políticas.

Um projeto social frente à capoeira comercial

18Na sua identificação com o « povo », os membros da Associação se diferenciam da capoeira « comercial », destacando que trabalham num « projeto social », « filantrópico », « sem fins lucrativos ». Como comenta Perigoso: « (...) A gente, através de trabalhos sociais, como são feitos no grupo, que é um grupo que não cobra pra dar aula, orienta em vários segmentos fora da capoeira; tenta trazer as coisas para dentro da capoeira que são úteis pra o bem estar do ser humano (...) », (11 de abril de 2007).

19No intuito de criar acessibilidade à prática para os setores subalternos, a Associação fomenta a não obrigatoriedade do uniforme, a fabricação artesanal de instrumentos e a gratuidade da prática, diferenciando-se do que eles chamam de grupos « comerciais » ou voltados ao « marketing ». De fato, eles relatam que a Associação se originou a partir do afastamento de um grupo de capoeiristas do Museu Afro-Brasileiro que pretendia entrar numa lógica comercial, em que se cobrava obrigatoriedade do uniforme, se promovia a venda de instrumentos e se instituía o pagamento de uma mensalidade. Como comenta Bússola (26 anos, capoeirista, serralheiro, formação militar, branco) :

« (...) Já a outra parte do grupo que se separou, era uma filosofia mais comercial. Militar não tem isso ai, ele quer passar pra o aluno o que ele sabe, o conhecimento dele, sem cobrar nada em troca. Então é por isso até que eu admiro a filosofia de ensino de Militar... eles faziam a parte mais de marketing, o aluno teria que pagar pra fazer capoeira, envolvia a parte lucrativa no esquema (...) », (17 de abril de 2007).

20O « marketing » do qual fala Bússola, poderia ser considerado como um dos fatores que atrai para a capoeira um público de maiores recursos, interessado na capoeira de academia. Segundo o mestre Militar, para buscar tal público, alguns capoeiristas

« (...) acabam deturpando a capoeira devido à sobrevivência… obrigam o aluno a comprar camiseta, calça, tudo da academia, né. E acabam deturpando a capoeira, não mostrando a capoeira como ele aprendeu, mas sim aquela capoeira que muitos segmentos querem ver, que atrai o aluno (...) », (15 de junho de 2008).

21Como se observa nos discursos e práticas analisados, o grupo procura convocar, principalmente, os setores de baixa renda ou os interessados na capoeira como « projeto social », e não as pessoas que procuram a capoeira a partir de uma perspectiva identificada pelo grupo como « comercial ».

O « marginal » na capoeira « cidadã »

22O projeto « Ginga da cidadania » foi uma das clivagens centrais na passagem do grupo de uma capoeira « malandra » à uma capoeira « cidadã ». A intenção de se afastar da imagem de « malandragem » não se relaciona somente ao « mito » – de circulação nacional – da capoeira malandra, mas também, à história da capoeira na cidade. As primeiras rodas na década de 1990, das quais os fundadores do grupo fizeram parte, se caracterizavam pela violência física, presença predominante de homens e consumo de drogas. Nesse período era frequente que membros de um grupo « invadissem » as rodas de outro grupo, entrando no jogo e provocando brigas, jogos que acabavam em golpes reais. Há seis anos a Associação ainda participava desta prática, mas para « entrar mais na sociedade » e « chamar mais público em torno da roda » (Bússola, 17 de abril de 1007), as brigas foram evitadas. Nesse processo, começaram a treinar no grupo mais crianças e mulheres jovens e adultas (muitas vezes mães das crianças). Atualmente, somente é permitido « acertar » com golpes no « jogo de dentro », exclusivo para capoeiristas experientes, o qual é geralmente praticado por capoeiristas homens em locais fechados, sem a presença de público leigo. A proposta atual do grupo é praticar capoeira como luta, enfatizando a capacidade de luta física no espaço da capoeira, retirando-a da vida cotidiana.

23No processo de afastamento da imagem da malandragem e no trabalho social, os capoeiristas da Associação procuram se aproximar das pessoas que, a seu ver, poderiam entrar na « marginalidade » com o objetivo de modificar sua realidade. Militar comenta que no treino do grupo já participaram « ladrões » e « criminosos », mas que ele não esta lá « pra julgar eles, fazer o que ? ».

24Esquisito (enfermeiro, distribuidor de gás, 28 anos, branco) reivindica seu trabalho para impedir que as crianças fiquem na rua se aproximando de situações de criminalidade :

« (...) Um colégio,... lá eu dou aula, 30 % são crianças de rua, que antes estavam na rua roubando, agora vão só treinar lá. Ficam treinando lá, já é uma educação também que estão tendo, né ? E aí eles não ficam no meio dos roubos, dos tiroteios essa coisa… (…) », (19 de junho de 2008).

25Outro movimento de identificação que o grupo realiza para se afastar da « malandragem » é a tomada de posição contra o consumo de substâncias que eles consideram nocivas à saúde, tais como o tabaco, o álcool, os psicoativos proibidos por lei e os anabolizantes. Segundo eles, estas estariam idealmente excluídas dos hábitos dos capoeiristas. Este posicionamento se relaciona, também, à história da capoeira « marginal » na cidade. Como explica Perigoso :

« (...) Aqui, capoeira era sinônimo de droga. Tem muito capoeirista relacionado com tráfico e que pratica... tem os más atletas, como toda arte marcial tem. Tem, dentro da capoeira, os marginais, o pessoal vinculado a droga. E eles passam essa visão errada da capoeira, que daí pessoal associa aquele mito que já vem lá de nossos antepassados (...) », (11 de abril de 20007).

26Nos discursos públicos, no treino ou em apresentações, os capoeiristas condenam o consumo das substâncias, principalmente àquelas proibidas pela lei e os anabolizantes. A posição a respeito do álcool e do tabaco é menos radical e só é pedido aos alunos para não chegar alcoolizados nem levar cigarros ao treino. Os membros do grupo comentam que eles não se interessam em intervir no consumo individual quando este não afetar a prática. Porém, o mestre e outros capoeiristas experientes utilizam a estratégia de se aproximar dos consumidores de maneira mais íntima, na tentativa de auxiliar a redução ou abandono do consumo dessas substâncias. O mestre relata que alguns participantes do grupo tinham lhe oferecido imprimir camisetas da Associação com a frase « não às drogas », e ele não aceitou : « (...) Não gosto de dizer isso pra ninguém, tem pessoas com dependência química, com problemas sérios (...) ». Essa argumentação é coerente com o posicionamento político pela « inclusão » de pessoas em situação de « marginalidade » por parte da Associação.

27Os capoeiristas destacam sua oposição quanto aos anabolizantes, os quais estão vinculados, segundo eles, às pessoas que treinam apenas para mostrarem-se fortes. Neste caso, os membros do grupo procuram não se identificar com os capoeiristas de setores médios altos, que podem pagar academias e anabolizantes e que, segundo eles, só estariam interessados na briga e na musculação. Mais uma vez, a identificação « cidadã » do grupo se afasta de alguns setores das classes médias e altas, numa política cultural focada na implementação da possibilidade de praticar a capoeira para os setores populares.

As mulheres em uma capoeira masculinizada

28O conteúdo prático e simbólico do significante « luta » mudou para os capoeiristas ao longo da existência do grupo. A Associação foi criada por três homens, quando a capoeira na cidade era reconhecida muito mais pelas brigas do que pelo trabalho social. No processo de identificação com uma capoeira « cidadã », as rodas públicas deixaram de ser um espaço de brigas e de demonstração de força e habilidades físicas e começaram a se constituir como espaços de « luta-brincadeira », sem contato físico na execução dos golpes. Os capoeiristas mais antigos da Associação percebem que, com esse processo, começaram a se aproximar dos treinos mais mulheres e crianças, intensificando, ainda mais, esta mudança no jogo do grupo.

29No entanto, o treino continua sendo percebido como um espaço de homens. As mulheres estão habilitadas para desempenhar todos os papéis (instrumentista, cantora, instrutora), entretanto, na prática os realizam muito menos. Ao entrar mulheres novas no grupo, o mestre deve propor oralmente que por um momento apenas entrem mulheres na roda, ou que somente elas cantem ou toquem. É habitual que nos treinos se proponham diferenças para homens e mulheres. Durante os exercícios de força, por exemplo, as mulheres são estimuladas a executar menos repetições ou utilizar mais apoios ; os movimentos de cadeira no samba de roda do grupo são considerados femininos (executados somente por mulheres) e as mulheres participam muito menos nos « jogos de dentro ».

30Na Associação se pensam os gêneros masculino e feminino através de matrizes heterossexuais (Butler, 1999). Mesmo não existindo um discurso punitivo verbalizado, ninguém se identifica no grupo como homossexual ou transgênero. A ausência destas identificações é visibilizada, por um lado, a partir das brincadeiras sobre comportamentos que os capoeiristas associam com estas identificações. Por outro lado, percebe-se uma ausência de falas sobre opções sexuais nas conversas do grupo (no contexto dos treinos) relativas à sexualidade.

31Nas suas práticas, os capoeiristas da Associação desenvolvem uma política hetero-normativa de gênero16, reproduzindo matrizes heterossexuais ao apontar papéis específicos para homens e mulheres. Porém, também contestam os papéis de gênero hegemônicos, por meio da convocatória de mulheres ao grupo e através da adaptação dialógica da movimentação do grupo aos contextos e aos públicos do treino. Esta política de integração é um desafio para o grupo, pois permite às mulheres acessar papeis que lhes são comumente vedados, tais como o de luta e o contato com a “marginalidade” da rua. Ao mesmo tempo, outra masculinidade é produzida que não se desenvolve somente a partir da força física.

Jogo de dentro na roda de rua

32Ao longo do texto analisei as políticas culturais da Associação e as tensões que se manifestam nelas. No campo da capoeira, trata-se de identificações com diversos estilos e narrativas histórico-políticas, além da progressiva definição do sujeito capoeirista como « cidadão », preocupado com a inclusão social e afastado da « malandragem ». Esta política se desenvolve no exercício de uma capoeira voltada para a luta, tanto física como social.

33Num âmbito mais abrangente, os capoeiristas se posicionam como defensores das tradições afro-brasileiras em um Estado « branco ». Ao mesmo tempo, eles priorizam a militância « popular » em detrimento da racial. Nesse sentido, procuram manter a acessibilidade do « povo », especialmente o de baixa renda, aos treinos e às rodas. No que diz respeito ao gênero, os capoeiristas participam de uma naturalização de alguns padrões de gênero historicizados e dominantes na sociedade brasileira. Porém, no processo de inclusão das mulheres no grupo, essas práticas vão se modificando, produzindo novos processos de generificação.

34As práticas desenvolvidas pelos capoeiristas neste projeto adquirem sentido político, tanto no plano organizativo – nos objetivos explícitos do grupo enquanto « projeto social », nas alianças com diversos partidos ou movimentos sociais – quanto na forma de apropriação da capoeira como arte marcial. O modo de praticar capoeira e os significantes priorizados nesta prática não constituem uma ferramenta para fazer política, mas são diretamente modos de fazer política.

35Todos os posicionamentos da Associação apresentam inúmeras nuances impossíveis a serem captadas em um artigo só. O que pode ser assinalado para « fechar a roda » é que, no treino da luta, tanto marcial como sociopolítica, a Associação procura afastar a capoeira da imagem da « malandragem ». No entanto o grupo se envolve nas problemáticas em torno das questões que são entendidas como relativas à « malandragem », tais como a violência, o consumo de drogas, e a exclusão social. Assim, o grupo configura suas práticas posicionando-se politicamente em relação ao contexto social do qual emergiu e que pretende modificar.

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Notes   

1  O termo « malandro » remete ao estereótipo de homem aventureiro e astucioso urbano das cidades brasileiras, especialmente no inicio do século XX (Cândido, 1970). O malandro poderia ser considerado um anti-herói (Vieira e Assunção, 1998, p. 27), mas a sua imagem nem sempre é valorizada negativamente no âmbito da capoeira : tal é o caso de alguns grupos de capoeira Angola que positivam a « malandragem » do jogo, referida à astucia e picardia.Na Associação Capoeira de Rua Berimbau, a malandragem é valorizada negativamente e associada à violência física, à delinquência e ao consumo de drogas legais e ilegais. A valorização negativa no grupo se relaciona à conjuntura que analisaremos no texto, mas também às narrativas históricas priorizadas pelos capoeiristas afins àquelas dominantes no âmbito da capoeira Regional de mestre Bimba, que reivindica a criação do estilo Regional como um afastamento da associação entre capoeira e malandragem (Vieira e Assunção, 1998, p. 23).

2  Considero a raça como categoria histórica, produto de processos socioeconômicos e políticos que transformam as populações em raças e criam significados raciais (Appelbaum, 2003).

3  Nesse sentido, o termo « políticas culturais » refere-se ao vínculo constitutivo entre cultura e política, entendendo que as práticas culturais não podem ser compreendidas sem considerar as relações de poder nelas imbricadas. Assim, como políticas culturais, pretendo dar conta dos modos pelos quais o cultural constitui fatos políticos (Ochoa Gautier, ob.cit).

4  Ochoa Gautier entende as políticas culturais como uma mobilização de representações. As características da capoeira e a própria perspectiva da performance, adotada por mim na análise, me levam a pensar não somente em termos de « representações », mas de práticas e experiências. Considero importante articular esta perspectiva representacional das políticas culturais com teorias da performance.

5  http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf, consultado 25 de agosto de 2012.

6  As categorizações raciais variam muito na história, mudando também a partir da auto-identificação dos sujeitos, das categorias dos censos e do critério dos analistas. Seguindo Segato (2005 :4-5), utilizo o termo « negro » para dar conta do signo racial que, no contexto brasileiro, tem efeitos específicos nas posições sociais das pessoas.

7 Refiro-me a identificação do Estado com símbolos ligados aos peões rurais dos séculos XVIII e começos do século XIX. O gauchismo cresceu na década de 1980 e remete na atualidade às populações rurais, especialmente aos setores médios e altos (Oliven, 1999, pp. 75, 104).

8  Tal o caso de diversas escolas de samba, terreiros de umbanda e batuque, escolas de capoeira, clubes negros e diversos espaços que são consagrados às tradições afro-brasileiras.

9  A capoeira pode ser considerada como uma performance afro-brasileira. Diversos autores reconhecem especificidades próprias das performances afro-americanas, tais como a influência da história escravocrata, as religiões africanas ou certas tradições comunais nas práticas (Abib, 2006 ; Frigerio, 1992 ; Lewis, 1992 ; Segato 2005). As performances afro-brasileiras podem ser incluídas nesta categoria, sem perder de vista sua especificidade na história nacional.

10  Alguns capoeiristas trabalharam e trabalham remunerados como professores em academias de musculação. Essa atividade não se inclui dentro das práticas da Associação, mas os capoeiristas costumam chamar os alunos desses espaços para treinar no grupo.

11  O campo da capoeira acolhe diversas tendências, marcadas pela identificação com distintos estilos ou escolas e pelas apropriações diferenciais dos praticantes. Porém, existem dois estilos dominantes de capoeira : Angola e Regional. O primeiro se caracteriza, entre outras coisas, por uma maior teatralidade, tempos de jogo mais prolongados e o uso de diversas intensidades nos movimentos. A capoeira Regional é identificada, geralmente, com o esporte ou a arte marcial, e com a utilização de movimentos mais acrobáticos, estilizados e velozes. As diferentes narrativas históricas que circulam no campo da capoeira costumam associar o “estilo” Angola com as raízes afro-brasileiras e a Regional ao seu processo de institucionalização e difusão no século XX. Estas identificações provocam discussões e disputas, nas quais os grupos de capoeira se posicionam através de suas práticas e discursos, e da adesão a diferentes narrativas históricas (Lewis, 1992 ; Frigerio, 2000 ; Sansone, 2000 ; Vassallo, 2006 ; Greco, 2009).

12 A descrição dos capoeiristas coincide com as caracterizações dos autores citados.

13 Dado que o treino não foca nos movimentos específicos da Angola, pode se supor que desde a perspectiva de um angoleiro praticante, a angola no grupo se limitaria a alguns movimentos específicos, mais lentos e baixos, mas não haveria um estilo muito desenvolvido nas estratégias ou « manhas » do jogo.

14  Trata-se do Museu Afro-brasilero « Treze de Maio », fundado no ano de 2001 pelos membros do Movimento Social Negro de Santa Maria.

15  Os cordões de graduação indicam o nível de experiência dos capoeiristas e se obtêm usualmente passando provas, no âmbito da capoeira de vertente « regional ».

16  A categoria de gênero se constrói a partir da diferença sexual, conferindo sentido a esta diferença. O gênero se exprime de formas particulares em diversos contextos histórico-culturais (Grosz ; 2000 ; Grossi, 2010). Como assinalo nesta análise, esta concepção não implica pensar que os sujeitos são passivos nos processos de generificação : o gênero se atualiza constantemente, performativamente nas práticas, e por isso mesmo é modificado pelos sujeitos (Butler, 1999, p. 15).

Citation   

Lucrecia Raquel GRECO, «« De malandro a cidadão » : políticas culturais na Associação Capoeira de Rua Berimbau, Rio Grande do Sul», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Capoeiras – objets sujets de la contemporanéité, mis à  jour le : 21/12/2012, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=524.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Lucrecia Raquel GRECO

Lucrecia Raquel GRECO est doctorante en anthropologie à l’Universidad de Buenos Aires-CONICET et s’intéresse aux domaines de l’anthropologie du corps et des politiques publiques. Elle problématise la corporalité et les politiques culturelles dans des projets sociaux dédiés aux techniques performatives dans des quartiers populaires de Buenos Aires et de Rio de Janeiro.