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A cosmopolítica angoleira em jogo

Marco Antonio Saretta POGLIA
décembre 2012

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.492

Résumés   

Résumé

Cet article est le résultat de mon expérience en tant que capoeiriste dans Áfricanamente École de Capoeira Angola à Porto Alegre (RS), au Brésil. Dans la première partie, je tente de décrire les relations de socialité qui constituent la «famille Áfricanamente» et la réalisation des entraînements qui se produisent quotidiennement dans cet espace. Ensuite, je décris la dynamique des rondes de capoeira qui ont lieu chaque semaine, en cherchant à mettre en évidence certaines relations qui caractérisent une manière ancestrale de relation au monde dans ces cosmologies d'origine africaine, en particulier dans le récit de la formation du Contre-maître Guto Obafemi, responsable d’ Áfricanamente. Dans la dernière partie, je cherche à articuler la production de connaissance de la capoeira angola avec l'anthropologie, en la qualifiant d’art de résistance et en proposant l'idée d'une cosmopolitique angoleira.

Abstract

This article is the result of my experience as a Capoeira player in Áfricanamente School of Capoeira Angola in Porto Alegre (RS), Brazil. In the first part, I try to describe the relationships of sociality that constitute «Áfricanamente family» and the practice of trainings that occur daily in this space. After, I describe the dynamics of weekly capoeira rounds, seeking to highlight some relationships that characterize an ancestral way to relate to the world in these cosmologies with African origin, especially from the narrative of the formation of Contramestre Guto Obáfemi, responsible for Áfricanamente. In the final section, I seek to articulate the knowledge of Capoeira Angola with anthropology, characterizing it as an art of resistance and proposing the idea of an angoleira cosmopolitics.

Resumo

Este artigo é resultado da minha vivência enquanto capoeirista na Áfricanamente Escola de Capoeira Angola, em Porto Alegre (RS), Brasil. Na primeira parte, busco descrever as relações de socialidade que constituem a «família Áfricanamente» e a realização dos treinos que ocorrem diariamente neste espaço. A seguir, descrevo a dinâmica das rodas de capoeira realizadas semanalmente, buscando evidenciar algumas relações que caracterizam um modo ancestral de se relacionar com o mundo presente nas cosmologias de matriz africana, especialmente a partir da narrativa da formatura de contramestria do Contramestre Guto Obáfemi, responsável pela Áfricanamente. Na seção final, busco articular os conhecimentos da Capoeira Angola com a antropologia, caracterizando-a como arte de resistência e propondo a ideia de uma cosmopolítica angoleira.

Index   

Index de mots-clés : capoeira angola, résistance, cosmopolitique, art, devenir.
Index by keyword : Capoeira Angola, resistance, cosmopolitics, art, becoming.
Índice de palavras-chaves : capoeira angola, resistência, cosmopolítica, arte, devir.

Texte intégral   

Acho que é de uma forma de encarar a vida como um

todo, assim... sei lá, como uma fera, como um bicho

(Mag, capoeirista da Áfricanamente)

Os devires-animais são, antes, de uma outra potência, pois eles não tem sua realidade no animal que se imitaria ou ao qual se corresponderia, mas em si mesmos, naquilo que nos toma de repente e nos faz devir, uma vizinhança, uma indiscerni-bilidade, que extrai do animal algo de comum, muito mais do que qualquer domestificação, qualquer utilização, qualquer imitação (Deleuze ; Guattari, 1997, p. 72).

1Este artigo resulta da minha vivência enquanto capoeirista junto à Áfricanamente Escola de Capoeira Angola, desde março de 2010, em Porto Alegre (RS)1. A Capoeira Angola busca resgatar e preservar valores « tradicionais » cujos princípios estão na origem da capoeira tal como praticada no Brasil pelos africanos e seus descendentes durante a escravidão, reivindicando uma ética e uma estética próprias intimamente ligadas a uma matriz cultural africana2. Na Capoeira Angola, como observa Pedro Abib, « persistem traços de uma ancestralidade e de uma ritualidade características do modo africano de se relacionar com o tempo, com o espaço, em última instância – com o mundo » (2005, p. 152).

2A Áfricanamente é sobretudo um espaço de reflexão sobre a capoeira. Os treinos acontecem de segunda à sexta-feira, nos períodos da manhã, tarde e noite, com aulas de movimentação e toque dos instrumentos da Capoeira Angola. Cerca de quarenta alunos, residentes em diversas regiões da cidade, frequentam a escola. Muitos deles pedalam quilômetros, às vezes diariamente, para treinar. O responsável pela escola é o Contramestre Guto Obáfemi, que há mais de duas décadas vivencia a Capoeira Angola. Sua principal referência na capoeira é Mestre Renê Bittencourt, de Salvador (Bahia), o qual lhe concedeu em 2010 o título de contramestria3. Embora não possua o título de « mestre de capoeira », é assim reconhecido pelos alunos : é com ele que aprendemos a capoeira, é o nosso mestre.

3É comum encontrar alunos nas dependências da escola mesmo quando não estão treinando. Muitas vezes permanecem « no África » assistindo aos treinos, preparando arames para os berimbaus, conversando ou fazendo alguma outra atividade. No intervalo entre 17h e 18h é feito um café coletivo, importante momento de integração do grupo. Ao terminar o treino os alunos organizam-se fazendo uma « intera pro café », na qual cada um contribui com alguns trocados para se comprar o pão e o que mais estiver em falta. Eventualmente alguém passa na escola só para tomar café com os amigos. Como observou Gravina,

Esse espaço visual, apropriado por um uso peculiar do tempo, promovendo uma relação específica do corpo com o ambiente e com outros corpos, acontece junto com uma dimensão muito do cotidiano, de chegar ali e ter sempre um abraço, um café esperando, pessoas sentadas numa mesa para acolher, ouvir, falar, e que vai, aos poucos, quase imperceptivelmente, produzindo o sentimento de fazer parte da “família Áfricanamente”. O vínculo com essa simbólica toda é constituído, igualmente, através de uma noção afetiva de pertencimento (2010, p. 160).

4Com expressiva união entre os alunos, e destes com o mestre, a metáfora familiar (« família Áfricanamente ») é frequentemente utilizada para se referir ao grupo – « eu prefiro tratar assim, como uma família, que a gente fica mais forte », afirma Edson4. Todos os alunos da escola, desde aqueles que ingressaram há poucos dias até os mais antigos, são responsáveis por receber os visitantes e fazer as honrarias da casa. Essa forma de socialidade no (e com o) espaço da escola caracteriza a constituição de um território, nos termos definidos por Félix Guattari e Suely Rolnik : « O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa” » (1996, p. 323).

5Todos os treinos da semana são conduzidos por Guto, exceto nos sábados à tarde, quando costumam haver na escola aulas abertas ao público ministradas geralmente por alunos. Durante a realização dos treinos não há qualquer tipo de segmentação do grupo. Participam ao mesmo tempo desde os alunos mais novatos aos mais antigos. As « aulas de ritmo » ocorrem de segunda a quinta-feira, das 19h às 20h, e são destinadas aos exercícios de toque dos instrumentos e canto das músicas de capoeira. Saber cantar e tocar é fundamental para se tornar angoleiro. O primeiro passo para se aprender a tocar berimbau é adquirir o seu, e todo bom capoeirista deve também saber fazê-lo – em função disso são realizadas anualmente oficinas de fabricação de berimbaus na escola. Cada aluno que o possui « arma »5 o seu berimbau, enquanto os demais pegam os outros instrumentos disponíveis. O aprendizado é muito pautado na observação e experimentação, e os iniciantes que ainda não souberem tocar seus instrumentos são geralmente orientados por outro aluno que esteja ao lado. Além das músicas de capoeira, são com frequência treinados ritmos presentes em outras expressões culturais de matriz africana, como samba de roda, afoxé ou maculelê. Durante as aulas de ritmo também se conversa sobre o significado das músicas e o momento adequado para serem cantadas durante os jogos.

6Nas « aulas de movimentação » são passados diferentes movimentos que devem ser realizados por todos, adequando-os se necessário de acordo com as dificuldades de cada um em executá-los. Todos os movimentos realizados durante os treinos, inclusive alongamentos iniciais, são colocados dentro da ginga – movimentação básica da capoeira –, sempre estimulando a criatividade e a improvisação. É comum ouvir do Mestre, ao explicar determinados movimentos, que « no meu corpo funciona assim, tem que experimentar no de vocês », sendo então a realização dos movimentos uma experiência singular e cada corpo deve encontrar a melhor forma de realizá-los. Guto costuma falar que recuperamos através da Capoeira Angola nossos movimentos de infância. É preciso que o capoeirista « veja no seu próprio corpo uma capacidade de expressão e de libertação também ». Aos poucos vamos tendo a agradável sensação de nos descobrirmos capazes de realizar movimentos que até pouco tempo seríamos incapazes de imaginar. É ainda notável a disposição geral dos alunos mais experientes em ensinar aqueles que estão iniciando. Segundo Guto, essa atitude é fruto dos « valores » da escola, de receber o outro com o mesmo carinho com o qual foi recebido. É comum no final, ou mesmo durante os treinos que Guto converse com o grupo sobre a Capoeira Angola – seus « fundamentos », sua relação com outras manifestações culturais de matriz africana e seu caráter de resistência –, pois um angoleiro deve aprender não apenas a jogar e desenvolver as habilidades musicais desta arte, mas sobretudo a falar sobre capoeira. Porque « a gente é uma cultura de tradição, uma cultura de oralidade », afirma :

Numa medida, então, esse espaço se inscreve como uma espécie de memória ativa de resistência. Nas diferentes formas expressivas – das pinturas nas paredes às histórias contadas, passando pelo aprendizado de uma movimentação ancestral –, evoca diferentes camadas temporais – da escravidão à remoção para as periferias – através de uma complexa imbricação entre a memória das violências sofridas e das ações de resistência a essas violências (Gravina, 2010, p. 161).

As rodas na Áfricanamente

7Nas sextas-feiras à noite ocorrem as rodas oficiais da escola. Sempre abertas à participação externa, frequentemente contam com a presença de mestres e capoeiristas convidados. Assim que termina o último treino do dia, às 19h, os alunos começam a organizar o espaço para dar início à roda. São colocados no fundo da sala, de frente para a porta, dois bancos de madeira onde sentarão os integrantes da bateria. Distribuem-se os instrumentos sobre os bancos e armam-se os berimbaus. Enquanto isso alguém varre o espaço, outro revisa os banheiros e a cozinha. Ao redor da sala são espalhadas almofadas em um semicírculo voltado para a bateria, delimitando o espaço da roda. Às 19h30min tem início a roda. Os alunos da escola, devidamente uniformizados, sentam nas almofadas. Visitantes que forem chegando podem sentar na roda ou, se preferirem, nas cadeiras que são colocadas atrás da roda para este fim. Ao soar a campainha, a troca de olhares demonstrando intenção de levantar define entre os mais próximos da porta aquele que vai prontamente atendê-la. Todas as pessoas que chegam na escola são sempre muito bem recebidas.

8Guto pega o Gunga6 e a seguir escolhe quem serão os outros integrantes da bateria musical. Assim que estes se direcionam para a bateria, fecha-se um pouco a roda, retirando-se as almofadas vazias para que não fique nenhum espaço vago, pois a ocorrência de « buracos na roda » faz com que a energia do interior escape e se perca o axé. O axé é a força cósmica e vital nas culturas de matriz africana, que Guto costuma definir como « poder de realização ». Conforme Guto, « a roda é uma corrente também, semelhante à corrente da umbanda, da roda do batuque. A roda é um campo mágico, é “os muros de proteção” daquela galera que tá ali no meio jogando. Então não pode ter buraco. Se ficou um buraco, ali passa a energia ». Quando o axé da roda está muito baixo, pode acontecer de arrebentar o arame de algum berimbau. Uma energia positiva muito intensa, por outro lado, também pode causar o mesmo efeito. Quando isso ocorre, alguém corre até a bateria e alcança ao tocador do instrumento « estourado » outro berimbau, que já se encontra armado para precaver-se contra esses incidentes. Geralmente faz-se uma breve pausa no jogo até que a bateria se restabeleça. As rodas na Áfricanamente costumam ser muito animadas, com o coro respondendo forte e todos muito conectados com os jogos. A atenção dedicada a cada jogo é tão impressionante que permite que comentários a respeito de algum golpe inusitado sejam feitos muitos dias após o jogo contando com a lembrança geral.

9O Gunga começa a soar, em seguida entra o Médio e depois a Viola. Só então entram os demais instrumentos. Tocam por um instante até que o Gunga dê o sinal para encerrar. Vai começar a roda. Essa breve « passagem » da bateria musical foi aprendida com Mestre Renê, o qual, conforme Guto, inseriu esta prática como uma forma muito peculiar de convidar os ancestrais para fazerem parte da roda. Como se pode observar, no universo da Capoeira Angola, mais especificamente no contexto em que se desenvolveu essa pesquisa, a relação com os instrumentos musicais permite o acesso a outras potências cósmicas, caracterizando um modo de se relacionar com o mundo muito presente nas cosmologias de matriz africana. « É muita caretice pensar que um berimbau é só um instrumento », pondera Mag.

10O Gunga faz sinal para os capoeiristas que se encontram nas extremidades da roda e estes se agacham ao « pé do berimbau ». Antes de começar o jogo será cantada uma « ladainha », acompanhada somente pelos berimbaus e pandeiros, seguida da « louvação », momento em que entram também os demais instrumentos7. Logo após a louvação começam os « corridos », que são as músicas cantadas no decorrer dos jogos, em formato dialógico pergunta e resposta. As perguntas, sujeitas sempre a improvisações, são entoadas por um solista e respondidas pelo coro formado pelos demais participantes da bateria e da roda. Os dois capoeiristas aguardam atentos a permissão para que o jogo seja iniciado, que é sinalizada inclinando-se levemente o Gunga em direção a eles. Estar ao pé do berimbau é um importante momento de avaliar a situação do jogo que vai ocorrer, e também de « pedir licença » para entrar na roda :

acima de tudo eu penso em pedir licença pra o que já aconteceu pra isso tá acontecendo. Muita gente jogou capoeira, muita gente utilizou esses movimentos de capoeira pra várias coisas durante os séculos. Pra se defender, pra vadiar, pra brincar, pra sambar... Então essa movimentação, eu peço licença pra tudo que já aconteceu, e esse é o momento. Pra mim poder hoje fazer uma meia-lua de compasso, essa meia-lua de compasso traz história de resistência. Então eu peço licença pra isso que veio antes (Karine).

11Cada jogo dura em média cinco a dez minutos. O fim do jogo pode ser solicitado por algum dos jogadores ou determinado pelo Gunga. Quando o capoeirista tem como adversário um novato, cabe a ele ensiná-lo a jogar. Mas se jogar com outro apenas menos experiente, é provável que « alivie »ainda um pouco o jogo, mas o segundo deverá ter cuidado para corresponder à cordialidade recebida, evitando assim que o seu adversário deixe de concedê-la. O jogo de capoeira envolve negociação, e como afirma Guto esta « às vezes é também uma forma de resistir ; (...) tu faz o embate, mas também tu negocia, tu cede ». José Carlos dos Anjos observa que « a dimensão simbólica da resistência ao escravismo certamente se encarnou no corpo » (2004, p. 111), numa reapropriação dos corpos que foram submetidos à escravidão. O autor identifica nas culturas diaspóricas negras uma « modalidade de diálogo com a modernidade que definiu fronteiras e estratégias culturais, enfatizou efeitos contrastivos e, acima de tudo, ressaltou o corpo como lugar de um pensamento lúdico de resistência » (idem, p. 110-111). Assim, é também notável a alegria e a ludicidade presente nos jogos, o que nos sugere que na Capoeira Angola « a habilidade corporal e a dimensão lúdica são indissociáveis e pode-se afirmar então que as habilidades expressivas (teatrais) são parte inerente da qualidade “estética” da capoeira angola, sendo, consequentemente, um dos conteúdos essenciais do percurso de aprendizagem » (Zonzon, 2007, p. 70).

12Quando o jogo termina os dois capoeiristas retornam ao pé do berimbau e cumprimentam-se com um aperto de mãos, agradecendo o jogo, e muitas vezes se abraçam encostando apenas a parte de cima das mãos nas costas do seu parceiro, evitando sujar sua camiseta após haver colocado tantas vezes a palma da mão no chão. Neste momento, são em geral aplaudidos. Logo após terminarem um jogo, os capoeiristas se dirigem para o centro da roda ou assumem algum instrumento na bateria, liberando assim o tocador para jogar. Aos mestres (ou ainda outros convidados visitantes) se oferece que entre para jogar a qualquer momento, sem precisar aguardar na roda. Estes geralmente sentam-se nas cadeiras e quando querem « vadiar8 » posicionam-se na extremidade da roda para entrar no próximo jogo. Quando um mestre está jogando, geralmente espera-se o momento em que ele decida dar fim ao jogo sem interrompê-lo, especialmente se for um mestre pertencente a uma geração mais antiga da capoeira.

13Adeus, adeus / boa viagem... A música indica que a roda está acabando, vai começar o « jogo de compra », momento em que os jogos podem ser « comprados » pelos outros capoeiristas, ou seja, aquele que quiser pode entrar na roda para jogar a qualquer momento, substituindo um dos jogadores, via de regra aquele que entrou antes no jogo. Após o canto da primeira música de despedida, todas as seguintes buscam manter essa temática até o encerramento da roda. Durante o jogo de compra o ritmo da bateria aumenta e os jogos são muito curtos. Os mais novos de capoeira evitam participar do jogo de compra, pois esse é o momento mais tenso da roda e pode se tornar arriscado, principalmente em rodas onde há pessoas de fora que desconhecem sua condição de iniciante. Às vezes o jogo é comprado ainda para « salvar » algum amigo que se encontre em alguma situação de jogo desvantajosa. Terminada a roda de capoeira, muitas vezes realiza-se ainda um samba de roda. Sempre comemorada pelos alunos, esta prática um tanto lúdica, na qual estão presentes diversos elementos da Capoeira Angola, ocorre principalmente nos dias em que há uma presença significativa de convidados ou visitantes. Ao final da noite são servidas frutas trazidas pelos alunos e compartilhadas com todos aqueles que prestigiaram o evento.

A formatura do Contramestre Guto

14No dia 03 de setembro de 2010 tivemos uma roda especial. Esse dia estava sendo muito aguardado por todos, desde nosso retorno de Salvador (Bahia), no início de agosto, quando participamos do evento « Pra contar certo tem que ver de perto »9, ocasião em que Mestre Renê manifestou a intenção de tornar público seu reconhecimento de Guto como Contramestre de Capoeira Angola. Estavam presentes muitos mestres e capoeiristas de Porto Alegre e região, além de amigos e familiares. Cada aluno da escola se comprometeu em levar uma bebida e algum alimento, preferencialmente preparado pela própria pessoa, com seu axé, para ser compartilhado com os visitantes. A organização do espaço, bem como o preparo das bebidas e dos alimentos para serem servidos, ficaram por conta dos alunos que puderam chegar mais cedo para ajudar. Às 19h, a casa estava lotada. Berimbaus armados, almofadas espalhadas em círculo pelo chão, todos aguardam ansiosos pelo início da cerimônia. Ninguém sabia ao certo como, nem em que momento nosso mestre se tornaria contramestre. Em seguida, Guto e Mestre Renê posicionam-se na bateria e dão início à roda. Muitas pessoas em pé, algumas disputando as portas e janelas do espaço, outras tantas sentadas nas cadeiras ou no chão, outras ainda por chegar. Mestre Renê assume o Gunga e Guto pega um pandeiro. Os berimbaus Médio e Viola foram oferecidos a outros mestres presentes e os demais instrumentos a alunos. Mestre Renê coordena a passagem da bateria e – iê ! – os instrumentos silenciam, para os aplausos do público. O Gunga dá o sinal, duas crianças são chamadas para abrir a roda. O Mestre canta então uma ladainha, faz as louvações, especialmente aos mestres Paulo dos Anjos, Canjiquinha e Aberrê os quais constituem sua linhagem na capoeira e aos orixás10, e dá início à roda.

15Guto aproveita uma pausa para apresentar e agradecer a presença dos mestres que compareceram ao evento e outros capoeiristas que « fortalecem » os eventos da Áfricanamente com suas presenças ou que possuem empenho em outras atividades ligadas à capoeira – fortalecendo assim a continuidade da capoeira de maneira geral. Um som repentino de atabaque se aproxima, acompanhado de um agê11. Os tocadores entram na sala e logo após um menino, com as vestes vermelhas características do Exu Bará (orixá responsável por « abrir os caminhos » nas religiões de matriz africana), começa a dançar no meio da roda. Estava iniciando a emocionante « dança dos orixás » apresentada pelas crianças do projeto Ori Inu Erê12, incluída na programação da noite como homenagem-surpresa ao « formando ». Ao término da apresentação das crianças, Mestre Renê faz alguns breves comentários sobre a relação da capoeira com as religiões de matriz africana e levanta-se, aproveitando a ocasião para dar início à formalização. « Depois desse toque desse atabaque eu acho que o caminho agora tá aberto, eu acho que agora a gente recebeu o sinal pra que a gente possa dar continuidade à festa de outra forma ». A seguir, fala resumidamente sobre a sua relação com Guto desde o dia em que o conheceu em 1996, quando « a energia bateu, a química bateu, aí a gente se tornou amigo », até o momento atual, no qual concede a ele o título de Contramestre.

Dessa vez eu tomei coragem pra fazer isso. Porque na verdade tem que ter coragem, né ? O capoeirista tem que ter atitude. E eu preciso ter essa atitude de assumir essa responsabilidade de, a partir de hoje, deixar isso legitimado. Porque na realidade todos vocês já respeitam o trabalho do Áfricanamente, né ? Todos vocês gostam do trabalho do Áfricanamente. Eu só vim legitimar uma coisa que é real, que é verdade. E eu tenho que agradecer a Guto e ao Áfricanamente por terem me escolhido pra fazer isso diante de todos os mestres de capoeira aqui presentes. Eu estou simplesmente legitimando o que vocês [dirige-se aos mestres] já vêm fazendo há muito tempo, que é dizendo o que Guto, ou o que o Áfricanamente representa pra Porto Alegre. Então eu só vim legitimar isso. Então, a partir de hoje, eu vou oficializar : Guto, Contramestre de Capoeira Angola !13

16Guto é ovacionado enquanto enxuga as lágrimas. A seguir, Mestre Renê fala sobre a « filosofia » da Acanne :

são poucos contramestres que eu tenho, são poucos treinéis que eu tenho. Até porque a filosofia da Acanne não é uma filosofia de tá forçando a barra nesse sentido, até porque meu discurso é totalmente o contrário. Meu discurso é o seguinte : a capoeira todo mundo tem que jogar, mas todo mundo tem que seguir o seu destino. Você pode ser médico, dentista, advogado, pedreiro, motorista de ônibus, taxista, um empresário e jogar capoeira bem. Você não precisa, pra jogar capoeira bem, ser um mestre de capoeira ou um contramestre. (...) Mas é aquela coisa, tem pessoas que nascem pra isso. Ou se torna um educador, ou mais um pra segurar essa barra, que não é fácil. Porque dar aula de capoeira não é fácil. Quem dá aula de capoeira sabe disso.

17A fala séria do Mestre é intercalada por risadas e brincadeiras pontuais. Neste momento, Mestre Renê pede « perdão » aos outros mestres presentes e, dizendo saber que está « quebrando padrões », chama a mãe de Guto para entregar o diploma. Os aplausos são novamente intensos. O diploma confere a Guto o título de Contramestre de Capoeira Angola pelo reconhecido trabalho que desenvolve no sentido de « preservação e divulgação desta arte ». O Mestre encerra sua fala apertando sorridente a mão do seu mais novo Contramestre : « parabéns, e não vá me decepcionar, hein ! ». Guto assume a palavra :

Quem tá começando a capoeira agora não tem a noção, mas todos os mestres aqui sabem que é uma batalha meio complicada dar aula de capoeira, viver de capoeira. Até hoje quando eu vou na minha vó ela ainda diz assim : « tá dando aula de capoeira ainda, meu filho ? » [como quem diz :] « tem que melhorar, tem que pensar em conseguir um emprego... ».

18Guto fala da importância dos mestres Ratinho e Fernando – « o cara que me ensinou como é bonita essa arte em termos de negritude ; porque até então eu achava que era “moreno”, eu achava que o racismo não existia » –, assim como outros mestres presentes, na sua trajetória na capoeira. Em seguida fala da sua relação com Mestre Renê e agradece o seu reconhecimento, ressaltando a importância em receber das suas mãos o título de Contramestre. A partir desse momento, o agora Contramestre Guto joga com todos os mestres presentes, que vão entrando na roda em sequência. Mestre Renê convida ainda todos aqueles que dão aulas de capoeira para que entrem na roda para vadiar. Além dos mestres, participam ainda da vadiação muitos outros amigos capoeiristas e alguns dos seus alunos mais antigos que acompanham a escola quase desde a sua fundação. Após o encerramento da roda foram servidas as comidas e bebidas, que foram sendo consumidas enquanto rolava um samba de roda muito animado, seguido de um empolgante maculelê.

Por uma cosmopolítica angoleira

19A coletividade, o reconhecimento dos mais velhos enquanto « detentores do saber » e a valorização das diversas expressões culturais de matriz africana são muito incentivadas na Áfricanamente e afirmadas enquanto características de uma forma ancestral de se relacionar com o mundo. Tal como observa Muniz Sodré acerca dos terreiros brasileiros, na Capoeira Angola também « se organiza, por intensidades, a simbologia de um Cosmos. É uma África qualitativa que se faz presente, condensada, reterritorializada » (Sodré, 1988 p. 52-53). Podemos assim observar a presença muito viva de uma racialidade negra firmada através do relacionamento com essa « África qualitativa » na dimensão do devir : o devir, na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, é da ordem da aliança, não da filiação, e « o que é real é o próprio devir (...) e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna » (1997, p. 18-19). Neste sentido, trata-se de « uma modalidade de não essencialização das raças, que nem por isso deixa de se fazer como espaço de devir histórico das raças » (Anjos, 2006, p. 23).

20Camille Dumoulié (2007) reconhece na capoeira uma forma de resistência que emerge através de uma « invenção poética e filosófica » em consonância com a perspectiva da « filosofia do Devir ». De acordo com o autor, « nunca são a obra de arte e tampouco o jogador que se opõem a uma ordem ou resistem a uma força : inversamente, é uma certa ordem do mundo ou uma estrutura social dada que, como o rochedo, constitui uma força de resistência contra a corrente da vida » (Dumoulié, 2007, p. 1). É que as linhas de fuga, como definiu Deleuze, são sempre primeiras, e são os mecanismos de poder que oferecem resistência aos movimentos de desterritorialização14. « A capoeira (...) é máquina de guerra », afirma Dumoulié (idem, p. 6). Seu objetivo não é a guerra, mas « a destruição da codificação e da estrutura do Estado » (idem). A máquina de guerra, segundo Deleuze, se define « por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos » (1990, p. 69). Desse modo, a Capoeira Angola coloca em jogo a construção de uma subjetividade angoleira e encontra na invenção e afirmação de novas condições de existência sua principal forma de resistência. O relato de Maskote é significativo nesse sentido :

as pessoas já chegam e sentem essa energia, e já vão fazendo parte dessa família, já vão saindo junto. Gostam muito dessas vivências assim que a gente faz, que a capoeira... aqui é o nosso lugar de proteção, o nosso lugar que a gente vem se energizar, mas a gente sai pra rua e a capoeira tá na rua também. A gente tá na rua, a capoeira é muito forte na rua também. E às vezes a gente se junta aqui e acaba lá num lugar, né, noutro lugar, noutra história – num parque, num bar, num show, num lugar pra dançar – e aí tu vê, assim, todo mundo feliz de tá junto. É isso que eu gosto aqui da escola, é esse o meu envolvimento, é de eu ver que quando a gente se junta a gente fica feliz, cara.

21Como observa Gilroy, as culturas expressivas da diáspora africana reiteram uma continuidade entre a arte e a vida e sustentam « um discurso filosófico que rejeita a separação moderna, ocidental, de ética e estética, cultura e política » (2001, p. 98). Essa afirmação é importante ao falarmos da Capoeira Angola, pois os mestres incentivam muito os alunos a fazerem uso na vida cotidiana dos ensinamentos que aprendem na capoeira. Essa forma de vivenciar a capoeira pode também ser observada nas brincadeiras, frequentemente realizadas entre os capoeiristas, de surpreender o outro desprevenido, em situação de vulnerabilidade no ambiente da capoeira ou mesmo na rua. « Tem que jogar capoeira fora da roda também, eu vivo falando isso ! », ensina Guto. A referência aqui certamente não é tanto à habilidade corporal, mas antes à possibilidade de ser « ladino e malicioso »15 frente ao aparelho de captura do Estado : « a estratégia africana de jogar com as ambiguidades do sistema, de agir nos interstícios da coerência ideológica » (Sodré, 1988, p. 124).

A gente acredita que a galera que venha pra cá não seja acomodada. Não se acomode com zonas de conforto. Não se acomode com a miséria que tá na rua. (...) Tendo esse papel de rebeldia, que também foi construído na nossa coletividade. (...) A pessoa pode ser capoeirista e trabalhar com enfermagem, por exemplo, a vida toda. Mas sendo capoeirista naquele trabalho dela. (...) Tentando compreender a história da capoeira. Essa história de coletividade da capoeira, essa história de resistência, de negociação. (Contramestre Guto Obáfemi)

22O caráter de resistência da Capoeira Angola é constantemente reafirmado pelos capoeiristas na Áfricanamente e é central na forma de vivenciar a capoeira neste espaço. Esta é a definição coletiva da « missão » da escola :

promover vivências de Capoeira Angola enquanto resistência individual e coletiva a toda forma de opressão, através de ações que estimulem a pesquisa, o resgate, a preservação e a socialização dos valores Afro desta arte ancestral, como via de reflexão e aprendizagem para a transformação humana e social16.

23É importante destacar que a resistência assume aqui uma forma positiva, através da afirmação dos « valores Afro desta arte ancestral ». Assim, se nos referimos à Capoeira Angola como arte de resistência, é porque

É nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais consequentes ao rolo compressor da subjetividade capitalística (...). A arte aqui não é somente a existência de artistas patenteados mas também de toda uma criatividade subjetiva que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias... (Guattari, 1992, p. 115-116).

24É nesse sentido que podemos falar de uma cosmopolítica angoleira, com vistas a não isolar o cosmo nem a política, pois como sugere Bruno Latour « o cosmo não é mononaturalizado, ele é a expressão de uma política » (2004a, p. 406). A noção de cosmopolítica foi elaborada por Isabelle Stengers e, deacordo com a autora, « o cosmos tal como consta neste termo, cosmopolítica, designa o desconhecido que constitui esses mundos múltiplos, divergentes e as articulações as quais eles poderiam ser capazes » (2007, p. 49, tradução livre). Esta perspectiva se opõe a toda possibilidade de instaurar « uma transcendência [que] teria o poder de exigir ao que diverge reconhecer-se como somente uma expressão particular do que constitui o ponto de convergência de todos » (idem). A crítica de Latour se dirige assim às teorias relativistas que consideram a natureza como categoria transcendente, jogando o aspecto inventivo das culturas para a esfera das representações sobre o fundo de uma natureza universal, negligenciando o fato de que esta última seja uma criação própria do Ocidente (ver Latour, 2004).

25A proposição cosmopolítica de Stengers busca, dessa forma, colocar em igualdade (mas não em equivalência) as vozes políticas através da recusa de um árbitro capaz de definir a priori os elementos que constituem o mundo. O importante é que falar de uma cosmopolítica angoleira implica reconhecer a criatividade e inventividade da Capoeira Angola, levar a sério o seu axé e todas as potencialidades que ela faz existir17. Assim, mais do que uma « visão de mundo », podemos considerar a « filosofia angoleira » uma forma não menos política do que artística de inventar o próprio mundo a partir da capoeira.

Bibliographie   

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GRAVINA, Heloisa, Por cima do mar eu vim, por cima do mar eu vou voltar :políticas angoleiras em performance na circulação Brasil-França. Tese de Doutorado – Porto Alegre, UFRGS, 2010.GUATTARI, Félix, Caosmose :  um novo Paradigma Estético, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

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ZONZON, Christine N., A roda da Capoeira Angola :os sentidos em jogo. Dissertação de Mestrado – Salvador : UFBA, 2007.

Notes   

1  As descrições que seguem decorrem principalmente de etnografia realizada no ano de 2010 para elaboração de trabalho de conclusão no curso em Ciências Sociais na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço a Ana Cristina Popp da Costa pela leitura minuciosa e apontamentos teóricos realizados.

2  Podemos entender por essa noção as culturas expressivas da diáspora africana que, conforme Paul Gilroy (2001), carregam « sua crítica própria e distinta da modernidade, uma crítica forjada a partir da experiência de ser escravo por questões de raça num sistema legítimo e declaradamente racional de trabalho não-livre » (p. 130) e constituem « a estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional a que chamo Atlântico negro » (p. 38).

3  A « trajetória angoleira » de Guto é apresentada por Heloisa Gravina, aluna da escola que escreveu sua tese de doutorado sobre Capoeira Angola (ver Gravina, 2010, p. 175).

4  Edson, assim como Karine, Mag e Maskote são capoeiristas da Áfricanamente, aos quais farei referência direta ao longo deste artigo.

5  Armar um berimbau é prepará-lo para ser tocado, esticando o arame até que se obtenha o som desejado.

6  A bateria é composta na Capoeira Angola por três berimbaus (Gunga, Médio e Viola), dois pandeiros, um agogô, um reco-reco e um atabaque. Existe toda uma hierarquia entre os instrumentos musicais, cuja expressão máxima é representada pelo berimbau Gunga, o mais grave.

7  A ladainha é uma forma musical caracterizada por uma narrativa cujo conteúdo pode celebrar algum mestre ou herói, fazer referências a algum episódio histórico ou traçar comentários sobre os « fundamentos » da capoeira. É executada por um cantador solista, geralmente o tocador do Gunga, para dar início às rodas de Capoeira Angola. Nesse momento deve-se evitar o redobre dos instrumentos para que a atenção geral esteja toda direcionada para o canto. Já durante a louvação, são feitas louvações à capoeira, aos mestres, a Deus e aos orixás, etc. Também durante a louvação pode-se chamar atenção para os perigos existentes no jogo de capoeira (Iê, faca de ponta / Iê, pode furar), para realizar comentários sobre os jogadores (Iê, é mandingueiro / Iê, sabe jogar) ou para convidar para jogar

8  Termo utilizado no meio capoeirístico para se referir à prática de jogar capoeira.

9  Pra contar certo, tem que ver de perto : circuito de oficinas, palestras e visitações à Capoeira Angola de Salvador, evento anual promovido pela Áfricanamente em parceria com a Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro (Acanne), coordenada pelo Mestre Renê, que prevê uma vivência de duas semanas participando de atividades diárias ligadas à Capoeira Angola.

10  Divindades do panteão das religiões de matriz africana.

11  Instrumento musical utilizados nos cultos das religiões de matriz africana.

12  Projeto da ONG Áfricanamente - Centro de Pesquisa, Resgate e Preservação de Tradições Afrodescendentes, da qual a escola faz parte.

13  Quando Mestre Renê afirma que está apenas legitimando diante dos outros mestres presentes o que estes « já vêm fazendo há muito tempo » – isto é, dizer « o que Guto, ou o que o Áfricanamente representa pra Porto Alegre »–, evidencia-se a importância da aprovação por parte destes últimos para que a titulação tenha efeito. Se realizar essa formalização significa « assumir uma reponsabilidade » para a qual é preciso « ter coragem », é porque a partir daquele momento Mestre Renê passa a ser reconhecido como a referência em relação a Guto no universo da Capoeira Angola.

14  « Já que as linhas de fuga são determinações primeiras, já que o desejo agencia o campo social, são, sobretudo os dispositivos de poder que se acham produzidos por esses agenciamentos, ao mesmo tempo em que esmagam ou os colmatam” (Deleuze,1996 :21).

15  Como afirmou Mestre Pastinha, grande referência da Capoeira Angola : « Capoeirista é mesmo muito disfarçado, ladino e malicioso. Contra a força, só isso mesmo. Está certo » (Pastinha, 2009, p. 23).

16  Conforme informa o site da escola: http://africanamenteescoladecapoeiraangola.blogspot.com.br

17 Muito já se falou sobre a « invenção das tradições » na Capoeira Angola, muitas vezes buscando revelar estratégias (políticas) que estariam por trás destas invenções. Deve ter ficado claro que sa noções de criatividade e invenção são aqui empregadas em outro sentido, a saber, aquele dado por Roy Wagner para ressaltar que « o homem cria suas próprias realidades » (2010, p. 218) e « afirmar a realização espontânea e criativa da cultura humana » (idem, p. 77).

Citation   

Marco Antonio Saretta POGLIA, «A cosmopolítica angoleira em jogo», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Capoeiras – objets sujets de la contemporanéité, mis à  jour le : 16/12/2012, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=492.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Marco Antonio Saretta POGLIA

Marco Antonio Saretta POGLIA est doctorant en anthropologie à l’Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói-RJ), et boursier CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Il est capoeiriste du groupe Áfricanamente Escola de Capoeira Angola (Porto Alegre, RS, Brasil) depuis 2010. Ses intérêts de recherche portent sur la capoeira angola, la culture afro-brésilienne et l’art.