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Arte, ritual e brincadeira nas performances das quadrilhas juninas

Eufrázia Cristina Menezes SANTOS
décembre 2016

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1436

Résumés   

Résumé

Les études de la performance soulignent la compréhension de la production culturelle comme un processus qui mène à la créativité de l’homme, à sa capacité d’improviser, de recombiner et de représenter ses propres actions. L’article souligne les dimensions rituelles, artistiques et ludiques des quadrilles du mois de juin de la ville d’Aracaju dans l’État de Sergipe sur la base des études de la performance de Victor Turner et Richard Schechner. Il est de notre intérêt de discuter le caractère communicatif, et en même temps, subversif de ces performances dans le processus de transmission du contenu culturel, à partir de la notion de comportement restauré.

Abstract

The Performance studies emphasize the understanding of cultural production as a process that leads to the creativity of man, his ability to improvise, recombine and represent his own actions. This article, which is based on the performance studies by Victor Turner and Richard Schechner, highlights the ritual, artistic and ludic dimensions of the quadrilhas juninas in the Brazilian city of Aracaju. It is our aim to discuss, from the point of view of the concept of restored behavior, both communicative and subversive nature of these performances in the process of cultural content transmission.

Resumo

Os estudos da performance sublinham a compreensão da produção cultural enquanto um processo que remete à criatividade do homem, a sua capacidade de improvisar, recombinar e representar as suas próprias ações. O artigo sublinha as dimensões ritual, artistica e lúdica das quadrilhas juninas da cidade de Arcaju/SE com base nos estudos de performance de Victor Turner e Richard Schechner. É nosso interesse discutir o caráter comunicativo e, ao mesmo tempo, subversivo dessas performances no processo de transmissão de conteúdo culturais, a partir da noção de comportamento restaurado.

Index   

Index de mots-clés : rituel, performance, quadrilles du mois de juin, festas juninas, jeux.
Index by keyword : ritual, performance, quadrille, festas juninas, play.
Índice de palavras-chaves : performance, quadrilhas juninas, festas juninas, ritual, brincadeira.

Texte intégral   

1A celebração por meio da dança e da música caracteriza fortemente as atividades culturais do ciclo festivo que homenageia, no mês de junho, três santos católicos (Santo Antônio, São João e São Pedro), em todo o Brasil. Na região Nordeste, em especial, durante o período das festas, casas, ruas, praças, arraiais e outros espaços servem como palco para várias manifestações culturais de forte caráter musical. O ciclo junino é rico em performances ancoradas no corpo, constituindo-se um dos principais instrumentos de expressão e comunicação de conteúdos culturais específicos. Dentro deste universo mais amplo as linguagens não verbais desempenham um caráter fundamental na encenação pública de novas e antigas tradições, reconhecendo neste processo o papel dos atores sociais como produtores culturais.

2 Em Aracaju1, cidade onde realizei a pesquisa de campo2, a música e a dança ocupam hoje uma centralidade nas festas Juninas que não desfrutavam num passado recente, quando os aspectos pirotécnicos (queimas de fogos) e religiosos eram predominantes. No formato atual da festa, essas duas linguagens ensejam formas características de associação, favorecendo encontros, trocas e diálogos entre as pessoas, num clima marcado pela alegria e descontração.

3 Dentre as manifestações culturais característica desse período encontram-se as quadrilhas juninas, dança típica executada em pares por jovens e adultos para realização de movimentos e coreografias diante de um público. A dança integra a tradição musical da festa ao lado de outras danças e ritmos regionais como o xaxado, o xote, a ciranda, a marcha, o samba de coco e o forró.

4No contexto festivo, a denominação quadrilha ganha duplo sentido. No primeiro, utiliza-se o termo para nomear a dança coletiva inspirada na quadrilha francesa do século XIX. No Brasil, a quadrilha adquiriu feições próprias a partir da combinação e rearranjo de elementos de outras matrizes estéticas e musicais. O segundo sentido refere-se à quadrilha enquanto associação civil3, com estrutura e organização próprias. Nas análises seguintes será impossível dissociar a dança do grupo ou este daquela, vez que não trataremos da dança per se, mas situando-a nos quadros social e cultural das festas juninas.

5A festa de São João sempre ensejou a formação de vários tipos de quadrilhas com perfis diferenciados: quadrilhas escolares, de família, de vizinhos, de amigos. Nesse contexto festivo, o surgimento de uma quadrilha poderá ocorrer espontaneamente, por razões meramente lúdicas, evocando o sentido de festa enquanto divertimento gratuito, alheio à rotina e ao cotidiano. Tais quadrilhas frequentemente surgem nos arraiais de bairro, em festas de rua, nos condomínios residenciais, ou em qualquer outro espaço favorável a esse tipo de formação temporária e improvisada.

6 Este trabalho, entretanto, circunscreverá suas análises às quadrilhas institucionalizadas, ou seja, aquelas que possuem uma associação durável e participam dos certames públicos. Justifica-se a escolha: essa modalidade de quadrilha acompanhou a modernização das festas juninas desencadeada nas três últimas décadas do século XX, um processo de reconfiguração ao longo do qual ela foi perdendo, paulatinamente, suas características de dança comunitária e baile rural, enquanto adquiria uma dimensão mais espetacular e teatral.  

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Apresentação da quadrilha Forró Bodó

© Eufrázia Menezes, 2011.

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Apresentação da quadrilha Lampião no Shopping Jardins, Aracaju- SE

© Eufrázia Menezes, 2007.

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Apresentação da quadrilha Maracangaia na Orla da Atalaia, Aracaju-SE

© Eufrázia Menezes, 2014.

7Neste artigo sublinho as dimensões ritual, artistica e lúdica desta dança com base nos estudos de performance de Victor Turner e Richard Schechner. Também coloco em relevo o caráter comunicativo e, ao mesmo tempo, subversivo dessas performances no processo de transmissão de conteúdo culturais por ocasião das celebrações das festas juninas na cidade de Aracaju. Um dos principais enfoques da performance é o entendimento do cultural e do social não como estruturas fixas e estáticas, mas como processo, enfatizando o papel dos atores sociais em sua produção. Sob essa perspectiva de análise a produção de cultura é vista como um processo de interpretação cultural; a ênfase recai sobre o ator social percebido como agente consciente, interpretativo e subjetivo (Langdon, 1996).

 A dança

8A quadrilha é uma dança coletiva da qual tomam parte homens e mulheres que formam pares para executarem movimentos e passos coreografados ao som de ritmos e músicas característicos. A dança é ao mesmo tempo uma forma de celebração, uma brincadeira, um ritual festivo cuja realização tem como principal referência o calendário cristão.  Hoje as apresentações de quadrilhas juninas não se restringem mais ao ciclo junino podendo ocorrer em feiras de turismo, festivais culturais, em eventos os mais diversos, nos quais a dança é exibida como um exemplar da cultura local. O travestimento dos brincantes é uma das suas principais características. O uso de vestes especiais servem para compor a figura das damas e cavalheiros (os brincantes), denominados de tabaréu/tabaroa (Estados de Sergipe e Alagoas), caipiras (na região do sudeste). Também são referidos de forma genérica como quadrilheiros e quadrilheiras.

9Numa primeira fase da história dessa dança, as roupas utilizadas pelos dançarinos remetiam a uma caracterização estereotipada de homens e mulheres das zonas rurais do Brasil, representados como tipos sociais rústicos e simples em seus modos de ser e de agir. Para compor esses personagens os cavalheiros (denominação dada aos participantes do sexo masculino) vestiam roupas quadriculadas e calças arremedadas, portavam chapéu de palha e sandálias de couro, maquiavam excessivamente o rosto, espessavam as sobrancelhas, desenhavam bigodes e cavanhaques, pintas escuras no rosto; simulavam falhas na dentição pintando-os com tinta preta ou outro recurso similar que provocasse o mesmo efeito.

10As damas (denominação atribuída às participantes do sexo feminino) trajavam vestidos de chita floridos (tecido de algodão rústico), usavam flores ou laços de fita coloridos na cabeça, maquiagem em excesso, simulavam ainda pintas no rosto. Era muito comum o uso de tamancos, ou sandálias de couro no pé. Os elementos requisitados para caracterizar os brincantes, eram vistos como símbolos do atraso e da pobreza dessas populações rurais.  As imagens construídas no contexto das apresentações das quadrilhas, acabam por atualizar as representações da fealdade atribuída aos rurícolas, em contraposição as representações de beleza e elegância associadas aos citadinos.

11A construção desses estereótipos é tributária das interpretações sociológicas que associaram modernidade e desenvolvimento às áreas urbanas das cidades brasileiras em contraposição ao atraso e subdesenvolvimento das áreas rurais. Nesse sentido, a dança e o travestimento de seus participantes adquiriram um sentido muito jocoso e satírico que tinha como objetivo criticar o estilo de vida e modus vivendi das populações do interior do país. Hodiernamente as roupas utilizadas distanciam-se desse padrão estético marcado pela rusticidade e aproximam-se do padrão do homem citadino prevalecendo o gosto pelo brilho e pelo luxo.

12Quanto ao bailado executado pelas quadrilhas, a disposição dos casais em fileiras vis-à-vis ou em círculo para execução da coreografia, ainda ocorre, porém, não é mais a formação predominante nos séculos XVIII e XIX, quando era dançada nos bailes europeus e americanos. Ao contrário do ocorrido em passado recente, hoje não existe um padrão único ou predominante para se dançar quadrilha. A execução dos movimentos e dos passos obedece às várias coreografias previamente definidas e ensaiadas pelos quadrilheiros. Com isso, a criatividade, os modismos e a competição têm provocado ano após ano o surgimento de novas coreografias cada vez mais criativas e sofisticadas.  

13 O número de dançarinos de uma quadrilha de grande porte pode chegar a cem pessoas, dispostas em cena para realizar coreografias complexas e variadas, com estrita observância do ritmo e do sincronismo dos movimentos durante sua execução. Os desenhos coreográficos variam bastante, a partir de uma proposta de conjunto que busca harmonia e correspondência entre o tema da quadrilha e o seus repertórios musicais. Eles poderão assumir o formato de uma caravela, de um coração, de uma letra, de uma asa ou de qualquer outra forma associada ao tema desenvolvido por meio da música, da dança, do teatro e da pantomima.

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Apresentação da quadrilha Pioneiros da Roça, no concurso Levanta Poeira ©Eufrázia Menezes, 2014.

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Apresentação da quadrilha Pioneiros da Roça ©Eufrázia Menezes, 2011.

14 As coreografias variam a cada ano ao sabor da criatividade dos coreógrafos amadores ou profissionais. Em algumas quadrilhas, a coreografia é definida em conjunto pelos próprios quadrilheiros, e não por um especialista. Além dos ritmos e danças tradicionais como o xaxado4, o xote5 e o baião6, já amplamente incorporados pelos grupos de quadrilhas, os marcadores e coreógrafos buscam inspiração em outras danças regionais, folclóricas ou estrangeiras, amparados quase sempre por um trabalho de pesquisa anterior.

15As quadrilhas, dialogando fortemente com o contexto musical do período de suas apresentações, chegam a incorporar as danças da moda, como a lambada, nos anos oitenta, e, mais recentemente, o kuduro, de origem angolana. As coreografias podem se tornar a marca identitária de um grupo, a exemplo do caracol da quadrilha junina Unidos em Asa Branca7, cujo desenho coreográfico representa a concha espiralada desse molusco. A dança reproduz esteticamente o movimento desse animal por meio de passos sincronizados, precisos e harmoniosos.

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Ensaio da quadrilha Unidos em Asa Branca © Rebecca Aimée, 2012.

16A condução coreográfica assim como a coordenação dos movimentos coletivos dos quadrilheiros são da responsabilidade do marcador, que hoje também atua como um animador de palco, com a função de estimular a interação dos quadrilheiros com o público. Em outros estados, o marcador orquestra os passos do exterior, sem dançar com o grupo. Em Aracaju, ao contrário, ele realiza as duas atividades simultaneamente, por meio de gestos e com o auxílio de músicas.

17As quadrilhas são acompanhadas por trios de forró ou por conjuntos musicais que integram, além da sanfona, triângulo e zabumba, outros instrumentos musicais – guitarra, baixo, flauta, pife, agogô, viola, violão e pandeiro. Hoje, contratar um bom trio de forró é dos itens mais caros no orçamento das quadrilhas, oscilando entre dez e quinze mil reais.O repertório musical, amplo e diversificado, engloba vários estilos e gêneros musicais como o xaxado, o xote, o baião, a ciranda, o forró, o coco, marchas juninas, músicas sacras, folclóricas e românticas.

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Apresentação da quadrilha Unidos em Asa Branca no concurso Levanta Poeira ©Eufrázia Menezes, 2014.

 O englobamento da dança pelo ciclo junino

18Um expressivo número de pesquisadores em danças populares identifica a quadrilha francesa como a principal matriz das muitas versões da dança encontradas nos continentes europeu e americano8. A quadrilha francesa é considerada uma variação  da country dance inglesa, surgida em fins do século XVII9. Tratava-se de uma dança rústica de origem camponesa associada às festas de maio, ocasião em que se celebrava o retorno da primavera. Alegre, vibrante e de fácil execução, a dança encontrou ampla aceitação entre os membros de todas as camadas sociais, inclusive da corte inglesa. Caracterizava-se por ser realizada a comando, com pares dançando em fileiras ou em círculos para executar as partes ou figuras. Da Inglaterra, a country dance irradiou-se por toda a Europa, consequentemente seus repertórios musical e coreográfico foram continuamente adaptados, modificados ou ampliados no âmbito de cada tradição local onde a dança fez sua entrada.

19No século XVIII, a country dance passa a ser executada na França, onde, ao incorporar novos elementos rítmicos e coreográficos, dá origem a outras modalidades de dança:  la Contredanse Française10, les lanciers, le cotillon e la quadrille.

20De acordo com Câmara Cascudo (s/d, p.745), a quadrilha francesa, foi introduzida no Brasil no início do século XIX, atinge o auge no período da Regência (1831-1840), quando é amplamente acolhida pelos membros da elite imperial11. A vinda da corte de D. João VI para o Brasil, além do seu caráter político, teve implicações culturais significativas, sendo responsável pela introdução de novos hábitos e costumes. Os mestres e instrumentistas franceses foram os principais responsáveis pela sua introdução nos grandes bailes e recepções. Segundo o folclorista Américo Pellegrini Filho (1980) as quadrilhas foram moda nos séculos XVIII e XIX no continente europeu, e no Brasil não foi diferente. Eram executadas nas festas palacianas, no carnaval e em outras ocasiões solenes ou festivas.

21À exemplo de outras manifestações culturais importadas da Europa, a quadrilha assumiu novas configurações ao incorporar elementos de diferentes matrizes estéticas, rítmicas e musicais aqui já existentes.

22Nos últimos anos do século XIX, já sob a República, a quadrilha francesa, que perde a preferência dos salões, encontra novo espaço ao ar livre, na zona rural e periferia dos centros urbanos (Andrade, 1989; Cascudo, s/d; Chianca, 2007; Tinhorão, s/d).  A dança sofreu as adaptações orquestradas pelo povo, as quais variaram ao sabor das tradições culturais locais. A esse respeito, afirma Câmara Cascudo (s/d, 745-6):

Popularizou-se sem que perdesse o prestígio aristocrático (...) o povo introduziu novas figuras e comandos inesperados, constituindo o verdadeiro baile em sua longa duração de cinco partes (...) aplaudidas, desde o palácio imperial aos sertões. (...) foi cultivada por nossos compositores, que lhe deram acentuado sabor brasileiro.

23Uma consequência evidente dessa popularização foi a adaptação dos termos franceses à fonética portuguesa, vez que os marcadores das quadrilhas não falavam o idioma de Luís XV: assim, “o en avant tous se transformaria em alavantu, balancê em balanceio, chemin du bois, changez em caminho da roça et retournez il pleut! em “Olha a chuva!” (Tinhorão, s/d).

24A compreensão do processo de popularização das quadrilhas deve considerar as implicações das mudanças sociais e culturais resultantes do advento da República, aspecto ressaltado pela antropóloga Luciana Chianca (2007, p.9):

O que explica esse deslocamento simbólico é o fato político e as implicações culturais da mudança de poder do Brasil Republicano, quando os costumes do período colonial e imperial foram desprezados pelas camadas burguesas urbanas e citadinas. Provavelmente, nesse momento a quadrilha teria sido abolida das festas dos citadinos ricos, continuando a serem dançadas pela população mais distante dos grandes centros urbanos, os interioranos – geograficamente e simbolicamente defasados em suas danças já “fora de moda”.  (sic)

25Na zona rural, as quadrilhas passaram a ser dançadas mais frequentemente nas festas de casamento, que o catolicismo popular acabaria por associar aos santos do mês de junho, São João, Santo Antônio e São Pedro considerados os patronos do amor e da fecundidade agrícola (Freyre, 1989, p.246).

26O adjetivo – junina - acrescentado ao nome da dança, índica a sua construção e representação como “dança típica”, cuja execução acompanha a sazonalidade da festa. Hoje, porém, a apresentação das quadrilhas, não se restringe mais a um período festivo específico, verificando-se ao longo de todo ano em múltiplos eventos que reclama a sua exibição e consumo como símbolo da cultura regional ou local.

Os Ensaios

27As quadrilhas juninas a exemplo de outras performances culturais são atividades culturais nas quais, trabalho e brincadeira estão intrinsecamente intercalados (Turner, 1982). A disciplina dos ensaios, a preocupação com a organização e planejamentos das atividades, são intercortadas por momentos de brincadeira, jocosidade e informalidade.

28O fim do carnaval na quarta-feira de cinzas encerra um ciclo de festividades de grande efervescência coletiva por todo país. É feita uma pequena pausa e logo depois no mês de março vários grupos de quadrilhas de Aracaju dão início aos ensaios cumprindo uma agenda de atividades que combina alegria, disciplina, cansaço e prazer. No entanto, não podemos tomar esse padrão como regra geral. Há grupos que iniciam suas atividades no segundo semestre, logo em seguida ao encerramento das apresentações do ciclo junino.  

29Por ocorrem com mais frequência nos finais de semana, os ensaios acabam se transformando em alternativa de lazer para muitos integrantes que não dispõem de alternativas para usufruir o tempo livre. Além de aprender coreografias e as músicas daquele ano, os quadrilheiros vivenciam situações e contextos de intensa sociabilidade por meio de outras atividades organizadas pelo grupo: passeios, viagens, festas, churrascos etc.

30A convivência construída meses antes das apresentações públicas, por meio dos ensaios, cria intimidade entre os integrantes do grupo.  Os corpos aprendem a falar entre si. Um olhar, um gesto desencadeia formas de comunicação, muitas vezes incompreensível para o agente externo que desconhece os códigos afetivos do grupo. Essa vivência prologada enseja igualmente a partilha de emoções e de interesse, criando zonas de solidariedade ou de conflito.

31Os ensaios são, sobretudo, ocasiões para transmissão e aprendizados das técnicas corporais (Mauss, 2003) necessárias à realização de competências artísticas. A quadrilha é uma dança-espetáculo, ou seja, ela dirige-se a um público. Nesse gênero, a coreografia  é consciente, formal e hábil. Aos elementos cenestésicos (experiências corporais, tensões musculares, sensações de equilíbrio, impulsos) somam-se traços visuais, audíveis ou teatrais, que introduzem a quadrilha nos domínios da arte (Langer,1980). A dança envolve a realização de passos e movimentos específicos: movimentos rápidos ou cadenciados, de ombros, pernas, cabeças, quadril; movimentos ritmados e repetitivos.

32Na região Nordeste, o aprendizado dessas técnicas corporais, necessárias à execução dos passos da quadrilha, inicia-se, na maioria das vezes, no período da infância, na escola, nas festas familiares, nos bairros, quase sempre de modo muito informal, por meio da observação, imitação e repetição.

33 Os repertórios gestual e simbólico são informados pelas tradições performáticas local e regional. A escola, em especial, ocupa, até hoje, um lugar importante na transmissão dessa dança popular; é no interior dessa instituição que muitas crianças têm seu primeiro contato com essa tradição performática. Essa instituição é também responsável pela reprodução dos estereótipos de tabaréu, matuto e caipira atribuídos aos quadrilheiros. Vale ressaltar que a caracterização dos alunos para as festas juninas é sempre vivenciada de maneira muito lúdica e pitoresca, sendo apreciada pelos pais e familiares dos alunos, por ocasião das celebrações das festas juninas.

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Trio pé de serra da quad. século XX ©Eufrázia Menezes, 2006.

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Ensaio da quadrilha Unidos em Asa Branca © Rebecca Aimée, 2012.

34Para Taylor (2003), a performance favorece a difusão de saber social, memória e sentido de identidade por meio de ações reiteradas, denominadas por Richard Schechner de “comportamento restaurado”. Para esse autor as formas tradicionais são condutas vivas que podem ser reacomodadas, reconstruidas, reiventadas. São condutas sujeitas às revisões. Nesse sentido, os ensaios das quadrilhas constituem a ocasião por excelência em que os performers realizam o trabalho de restauração da dança. A esse respeito adverte: “às vezes, mudanças em representações tradicionais são feitas pelos que estão dentro e não impostas de fora” (Schechner, 1985). As mudanças não se restringem a forma, dizem respeito também aos conteúdos culturais comunicados por meios de suas performances. Mitos, personagens emblemáticos, músicas e danças regionais, práticas religiosas, políticas e sociais, são encenados, reinventados, reproduzidos ou criticados anualmente em suas apresentações públicas.   

35 Victor Turner (1987) considera que as performances culturais “não são simples reflexos ou expressões de uma determinada cultura, ou mesmo de suas mudanças”, mas, “agentes potenciais de transformação, representando uma espécie de olho, por meio do qual as culturas veem-se a si mesma”(p.24). O autor acredita que conteúdos tradicionais dramatizados nas performances não têm existência a priori, que estas não estão fixadas definitivamente. Seriam, ao contrário, criadas, negociadas, influenciadas e perparsadas por diversas ideologias. O seu significado real é sempre contextual, derivando da união do script (texto cultural) com atores e audiência numa situação cultural particular. O texto cultural, longe de se manter inalterado, sofre várias restaurações, a exemplo do que se verifica nas performances das quadrilhas juninas.

A quadrilha em cena

36As quadrilhas juninas de Aracaju se transformaram, por assim dizer, em verdadeiras operetas, conseguindo combinar a expressividade da dança, da música e do teatro. O repertório musical, coreográfico e gestual desse teatro musicado se constrói a partir da definição de um tema, que poderá estar ou não associado ao universo simbólico da festa. O quadro abaixo nos dá uma visão dessa diversidade temática.

Exemplos de temas das quadrilhas juninas2011/ 2012

Fonte de Dados: Banco de dados do Grupo de Pesquisa Ritual, Festa e performance.   

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37Os temas das quadrilhas costumeiramente nos remetem à símbolos da região Nordeste, como a caatinga, a asa branca e o mandacaru; a tipos sociais do sertão ou da zona rural, como o sertanejo e o vaqueiro ;à mitos religiosos, como a fama de Santo Antônio de santo casamenteiro; a figuras emblemáticas, como Luiz Gonzaga12, Padre Cícero13, Lampião14 e aos mais diversos personagens do imaginário popular. Há grupos de quadrilhas que extrapolam esse universo simbólico para abordar temas clássicos ou contemporâneos em suas apresentações. Independente da temática é sempre possível o recurso ao fantástico, ao maravilhoso e à figuração.

38Com a escolha anual dos temas, os quadrilheiros acabam promovendo um diálogo com outras manifestações culturais, o que favorece a introdução de novos símbolos e linguagens em suas performances.

39A definição do tema reflete o gosto popular pela novidade, pela invenção e pelo artificio. Preferências que ecoam as belas palavras de Maravall (2009,p.356) ao discutir a importância desses elementos na cultura barroca: “o novo agrada, o nunca visto atraí, a invenção que estréia embeleza”. Tal constatação se mostra igualmente válida para entendermos as motivações e os valores atuantes no processo de criação do espetáculo das quadrilhas.

40O tema da quadrilha influencia a produção das suas imagens, bem como define o cenário, o modelo das vestimentas, os destaques, os ornamentos, a coreografia e os repertórios musical e gestual. Distingue-se, no final dos anos noventa do século XX, um movimento no interior das quadrilhas semelhante ao que Cavalcanti (1994) observou ocorrer nas escolas de samba do Rio de Janeiro, na década de 70: as imagens tornaram-se recursos eficazes na construção do espetáculo produzido pelas quadrilhas. No caso das escolas de samba cariocas, a importância conferida à dimensão plástica dos desfiles (fantasias, adereços e alegorias) pelos meios de comunicação ofuscou a primazia do samba-enredo15, privilegiando o aspecto visual, o que enfatiza seu caráter notadamente espetacular. Um fenômeno que, aparentemente, tem impactado as quadrilhas juninas nos últimos anos. Hoje, o visual, o estético – materializados nos cenários, ornamentos, efeitos especiais, vestuário – importam tanto quanto a dança – ou talvez mais.

41As quadrilhas, à semelhança das escolas de samba, possuem destaques – participantes escolhidos para representar um personagem ou exibirem uma roupa mais luxuosa. São escolhidos entre as figuras mais tradicionais (como noivos, rainha, rei do milho, ou o casal Lampião e Maria Bonita) e podem mudar anualmente, conforme variem os personagens do tema escolhido. A diferenciação interna entre os componentes deixa entrever privilégios, preferências, laços de afetividade, fatores que atuam nas redes de relacionamento do grupo e podem em alguns casos desencadear conflitos e dissensões.

42O traje caipira, emblemático das festas juninas enquanto “festa de interior”, foi submetido à releitura por algumas quadrilhas, que agora o apresentam em versões urbanas e esteticamente elaboradas. O antigo estereótipo do nordestino feio, pobre, maltrapilho, desengonçado e com dentição precária perdeu espaço para representações contemporâneas de um indivíduo que mora em zonas urbanas e usufrui dos avanços da modernidade. Além disso, substituiram-se as velhas camisas quadriculadas e os vestidos de chita por tecidos mais nobres, decorados com lantejoulas, canutilhos e outros elementos brilhantes utilizados na confecção das roupas das damas e dos cavalheiros.

43Esse quadro mais amplo permite dispor as quadrilhas em duas vertentes: aquela formada pelos grupos reféns de narrativas, clichês e estereótipos atrelados ao Nordeste, a partir de certos recortes temáticos, como sertão, seca, miséria, cangaço, banditismo e violência. Representações negativas muitas vezes encenadas de forma jocosa. Uma espécie de paródia que leva o público a rir de si mesmo, com intrínseco poder de crítica social presente nos conteúdos culturais encenados. A segunda vertente, por seu turno, seria representada pelos grupos que ressaltam a diversidade, criando e encenando por meio da arte das quadrilhas juninas imagens novas e mais positivas da região.

44Os espetáculos produzidos a cada ano revelam escolhas culturais e estéticas dos grupos envolvidos em sua realização, as quais o público poderá ou não se reconhecer ou se identificar. Durante o mês de junho, é possível apreciar estilos, formatos e dispositivos coreográficos diferentes de quadrilha pertencentes a um mesmo gênero de dança, o que nos leva a pensar as quadrilhas juninas como realidades formais e sociais polissêmicas. O emprego do singular poderia suscitar a insustentável ideia de que haveria um padrão ou modelo irretocável da dança a ser universalmente seguido. No plano da arte popular, tais padrões, quando existem, ao contrário de permanecerem inalterados, são fortemente tributários de um contexto histórico, refletem o espírito de uma época, e movimentam-se dentro de um quadro de forças bem específico.

45Através dessa engenharia social elementos poderão ser abandonados, esquecidos, outros serão acrescentados ou modulados pelo gigantesco processo de criação coletiva.

46No contexto dos certames públicos, a dança, que surge como elemento predominante em algumas quadrilhas, é secundarizada em outras pelos aspectos dramáticos e teatrais. Há ainda aquelas que privilegiam os elementos visuais e plásticos na apresentação. Nesse sentido, os múltiplos significados das quadrilhas não estão inscritos na sua forma. O surpreendente hoje poderá tornar-se cediço amanhã: a novidade do presente será ultrapassada pela moda do ano vindouro. Esteticamente, cada um desses elementos, ou sua combinação, produz efeitos artísticos específicos cujo objetivo é impressionar, suscitar emoções e interações naqueles que assistem aos espetáculos produzidos (coreográfico, musical, teatral ou estético) ou nos que deles participam. Ressalte-se, todavia, que a preponderância de um elemento não impede que os demais integrem o conjunto da cena. Na realidade, esses rearranjos informam também as escolhas estéticas, culturais e políticas efetuadas por cada grupo.

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Apresentação da quadrilha Apaga Fogueira, no concurso Levanta Poeira

© Eufrázia Menezes, 2014.

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Apresentação da quadrilha Apaga Fogueira, no concurso Levanta Poeira

© Eufrázia Menezes, 2014.

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Apresentação da quadrilha Poeirinha do Sertão no concurso Levanta Poeira ©Eufrázia Menezes, 2014.

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Apresentação da quadrilha Pioneiros da roça ©Eufrázia Menezes, 2011.

Drama e Ritual no casamento caipira

47No contexto da apresentação das quadrilhas juninas o casamento na roça ou caipira está associado à fama de santo casamenteiro atribuída a Santo Antônio pelo imaginário popular da festa. Antes da apropriação dos rituais pagãos pela Igreja Católica, o casamento aparecia associado às ideias de renovação, regeneração e fertilidade, características dos rituais e festas celebrados durante o solstício do verão no continente europeu. Segundo Peter Burke (2010), os rituais premonitórios característicos dessa época do ano não se restrigiam as previsões sobre a próxima colheita, estendiam-se ao futuro das jovens solteiras que ansiavam por casar.

48 Câmara Cascudo, no seu já clássico Dicionário do Folclore Brasileiro (s/d), refere-se à celebração de casamentos que foram realizados até o início do século XX, em noites de São João em várias zonas interioranas do Brasil. Por ocasião das festas de colheita os noivos celebravam a união em volta da fogueira, em presença dos pais, padrinhos, familiares e convidados.  

49A devoção ao santo, trazida pelos portugueses, já era uma prática religiosa disseminada entre as camadas populares. O isolamento em que viviam essas populações e a dificuldade encontrada naquele contexto social para percorrer grandes distâncias constituíam as razões que motivavam a realização destas cerimônias. O casamento ensejava grandes reuniões entre parentes, amigos e vizinhos, que celebravam o sacramento com uma grande festa regada por muita comida, bebida, música e dança (ibidem, p.480).

50 Os textos culturais que servem de referência aos grupos de quadrilha para teatralização do drama estão dados na tradição oral, na literatura de cordel e em pequenas peças populares. No ciclo junino são teatralizadas várias versões do casamento, das quais destacarei duas das mais recorrentes durante a minha pesquisa de campo: a primeira dramatiza o desespero de uma mulher solteirona ou de uma viúva que pede a intervenção dos santos juninos para casar. O casamento da viúva é associado à figura de São Pedro, para quem dirige as suas súplicas e promessas, enquanto a primeira clama a intervenção de Santo Antônio.

51Descrevo como exemplo a performance da quadrilha Maracangaia, em 2007, no Arraiá Arranca Unha do Centro de Criatividade “João Alves Filho” na cidade de Aracaju/SE. A cena tem início com a fala do marcador, este dirige-se ao público de modo solene e começa a declamar em voz alta:

Boa Noite! Minha gente

Boa Noite eu vim lhe dar

Ao dia 13 de junho quero vocês reportar

Agora minha senhora

Não podes imaginar

O que mulher encalhada é capaz de aprontar

52As damas da quadrilha dispostas em quatro filas entram em cena e entoam em uníssono:

Meu Santo Antônio Querido

Meu Santo Vitorioso

Se tu não me deres marido não tiro você do poço.

53O marcador entra em cena mais uma vez e continua a declamar:

Epa! Epa espera aí

Mas vou dizer uma coisa

Acredite quem quiser

Você pode ver que dentro dessa igreja, só existe mulher.

Mas vou dizer uma coisa

Que é pra não causar espanto

Quem celebra esse casório

É o espírito do casamenteiro santo.

54O casal de noivos posicionados no fundo da quadrilha dirige-se de braços dados à frente da quadrilha, dançando ao som do trio pé de serra (conjunto musical) sob o comando do sanfoneiro Coelho dos oitos baixos:

São João batiza

Santo Antônio Casa

E os namorados vão mandando brasa.

55Durante a música os noivos dançam alegremente de maneira jocosa, ajoelham-se e trocam aliança ao som do trio que continua a cantar:

São João é da velha guarda

Mas fica feliz quando o jovem casa

Muita alegria no dia do casamento

São Pedro diga a São João

Que Santo Antônio é o carinha lá do céu

As moças que rezar pra Santo Antônio

Pode contar que vão ganhar um véu.

56A noiva joga o buquê e tem início a quadrilha.  

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Casal de noivos. Quadrilha. Assum Preto ©Eufrazia Menezes, 2009.

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Quadrilheiro travestido de Padre ©Eufrázia Menezes, 2009.

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Casal de Noivos da quadrilha Xodó da Vila, no concurso Levanta Poeira ©Eufrázia Menezes Santos, 2014.

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Cenário do casamento caipira da quadrilha Gaviões do Nordeste

©Eufrázia Menezes, 2009.

57Nesta versão o ritual do casamento encena a mediação entre Deus e os homens, exercida pelos santos no catolicismo popular. Gilberto Freyre (1989) e Sergio Buarque de Holanda (1969) referem-se a esse tipo de catolicismo popular ancorado num modelo relacional marcadamente afetivo e familiar que cria uma aura de intimidade entre os santos e seus devotos. A ação de imergir o santo no poço de cabeça para baixo ou amarrá-lo na mesma posição na cabeceira da cama, tem como objetivo obrigar o santo a atender ao pedido. Significa também uma forma de castigo que lhe é impingido por não ter ouvido as súplicas endereçadas.

58A simbologia dos santos como padroeiros do amor, confere as festas juninas um forte apelo sexual. No caso do casamento encenado, a personagem central, seja a viúva ou a solteirona, sofre um processo de erotização fortemente associado ao estereótipo da mulher que arde em desejo em busca de um pretendente. A coreografia da personagem privilegia movimentos no baixo ventre: levanta a saia, remexe o quadril de forma sensual e abana genitália. O teatro das quadrilhas juninas é herdeiro de uma cultura cômica popular que explora imagens do corpo a partir de um realismo grotesco (Bakhtin, 1999).

59A segunda versão gira em torno do conflito familiar deflagrado com a descoberta da gravidez de uma jovem fora do casamento. Nesse modelo o casamento caipira assume a forma de um drama ritual, colocando em encena o conflito social entre duas famílias. A razão é motivada pela “perda” da virgindade seguida de gravidez pela protagonista do drama. Os textos culturais encenados pelas quadrilhas criam perfis psicológicos para os participantes do drama. À jovem grávida são atribuídos os seguintes valores e qualidades: bonita, fogosa, religiosa, pura, ingênua, aflita, nervosa, impaciente etc.; O noivo aparece representado como esperto, malandro, bêbado, oportunista, medroso, etc. As representações do padre, variam bastante prevalecendo um tom jocoso ou alegre na performance dos atores escolhidos para representá-lo. A performance dos pais dos noivos é responsável pela criação de uma atmosfera de tensão e descontentamento, em especial, a performance do pai da noiva, que encontra na violência a única alternativa para resolução do conflito.

60Em algumas versões o pai é representado como coronel acompanhado por guarda-costas ou jagunços16 que garantem pela intimidação e pela força, que o noivo case-se com sua filha e lave a sua honra. O drama ritual atualiza um conjunto de representações negativas da região nordeste enquanto espaço da violência e da valentia, terra sem lei, onde o assassinato é quase sempre motivado por vingança.

61No ritual teatralizado do casamento caipira distinguem-se as quatro fases características dos dramas sociais, lidos na chave de interpretação de Victor Turner (2008): ruptura, crise, ação corretiva e reintegração. A ruptura instaura-se com o descumprimento da norma moral sancionada pelo núcleo familiar – sexo e gravidez são vistos como ações legítimas somente quando realizadas no âmbito do casamento. Nesse caso a crise é deflagrada pelo interdito - a gravidez da jovem concebida fora do matrimônio. O não cumprimento da regra gera uma crise familiar. Todos os que estão envolvidos no drama experimentam momentos de liminaridade, em especial o jovem casal que vivenciam uma posição marginal até o momento do casamento. A performance da noiva traduz sua ânsia pelo casamento, em contraposição a performance do noivo que tenta se furtar do casamento de todas as maneiras.

62 Em nome da honra da família os pais exigem a reparação do ato ilícito, por meio do casamento. Na maioria das narrativas a arbitragem do conflito – que corresponde à terceira fase do drama, a ação corretiva - é realizada pelo delegado da cidade ou pelo padre. O primeiro intimida o noivo exibindo armas em punho, com ameaças de violência física e simbólica (em muitas narrativas o noivo é alvo de insultos verbais). O padre representa o poder social, político e espiritual da Igreja que historicamente arbitrou em vários conflitos, em especial, em pequenas comunidades onde o braço forte do Estado não conseguia alcançar. Depois de várias tentativas abortadas de fuga, o noivo acaba aceitando casar com o aval da Igreja Católica. A reintegração do jovem casal na comunidade por meio do casamento é comemorada com uma grande festa.

63O acontecimento teatralizado refirma a capacidade dos grupos estabelecer alianças resolvendo o conflito pela festa (Mauss, 2003). Durante a encenação pública, a tentativa de resolução do conflito veicula tensão, medo e desafio com uma significativa dose de humor. Mas na sequência o drama tem um desfecho surpreendente, os noivos casam e tem início o baile onde todos dançam coletivamente a quadrilha.

64As bodas fictícias expressam uma cultura cômica popular que conjuga a sátira, a jocosidade, irreverência e inversões rituais em suas modalidades de ação. A formação de um binômio cômico baseado sobre contraste (alto/baixo; gordo/magro; velho/jovem) é bastante explorado pelas quadrilhas (Bakhtin, 1999; Burke, 2010). Prevalece hoje a encenação musical do casamento com conotação mais romântica. A cada ano, os atores sociais envolvidos na encenação deste ritual apresentam versões e/ou inovações do mesmo texto cultural, inserindo novos personagens e variações no tema central.

65Esse teatro popular funciona como uma poderosa ferramenta de crítica social de temas e valores como casamento, virgindade, poder, autoridade, etc. Esses são glosados com irreverência e deboche, com a participação do público, que interage com os personagens-chave desse drama ritual.

66Dentre as sete funções atribuídas às performances por Richard Schechner (2001), cinco podem ser facilmente associadas às quadrilhas juninas, elas são: ações de entreter, de fazer uma coisa que é bela, de marcar ou mudar a identidade, de fazer ou estimular uma comunidade, de ensinar, persuadir ou de converter. O espetáculo das quadrilhas integra a dimensão lúdica da festa, mas nela não se circunscreve. Para algumas pessoas assistir quadrilha é uma experiência estética associada ao extra cotidiano, que é apreciada e vivenciada como arte. A beleza plástica é o produto da combinação de várias linguagens (verbais e não-verbais) com elementos cênicos e técnicos (cenários, trajes, painéis, adornos corporais etc.). O uso desses recursos durante as apresentações, além de atenderem os anseios estéticos do grupo, funcionam como veículos de conteúdos culturais.

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Notes   

1  Aracaju é a capital do Estado de Sergipe, localiza-se na região Nordeste do Brasil, possui 181.857 Km² e uma população estimada em torno de 623.766 mil habitantes. Fonte: www.cidades.ibge.gov.br  .

2  O presente capítulo está ancorado na pesquisa de campo realizada  entre 2007 e 2012 junto às quadrilhas Juninas da cidade de Aracaju/SE.

3  Uma associação civil é uma pessoa jurídica de direito privado tendo por objetivo a realização de atividades culturais, religiosas, recreativas, etc., sem fins lucrativos ou seja, não visam lucros e dotada de personalidade distinta de seus componentes (art.44 do novo código civil, lei 10.406 de 2002).

4  Dança originária do Sertão de Pernambuco, os dançarinos realizam movimentos ternários e/ou quaternários para frente e para os lados com o pé direito, deslizando-o pelo chão num sapateado ligeiro.

5  Dança e música executadas em ritmo binário, os dançarinos realizam passos para os lados com as pernas alteadas até a altura do joelho.      

6  O baião é uma dança executada por pares de dançarinos. Seus passos mais conhecidos são: balanceios, passos de calcanhar, passo de joelhos, rodopios e estalar de dedos.

7  A quadrilha Unidos em Asa Branca foi fundada em 1980 por jovens do conjunto residencial Senador Leite Neto, localizado na zona sul de Aracaju/SE. Em 2009 foi campeã do concurso regional de quadrilhas juninas promovido pela Rede Globo de televisão, a maior emissora do Brasil

8  De acordo com Giffoni (1973, p.102) A quadrilha francesa encontra-se também na origem das danças sul-americanas denominadas cielito e pericon, sendo referidas nos Estados Unidos como square dances.

9  Autores como Werner Schuftan e Eugène Giraudet, citados por Giffoni (1974), apresentam  a Escócia e a Normandia, respectivamente como berço da dança.  O último afirma que ela teria  migrado da Normandia (região da França) para  Inglaterra. Deste país a dança teria se irradiado para toda Europa.  

10  À respeito da contradança francesa ver a importante obra de Jean-Michel Guilcher “la contredanse, un tournant dans l’histoire françaised de la danse”, éditions complexe, CND (rééditions paris 2003).

11  Sobre a execução das quadrilhas nos salões do Segundo Reinado ver: Pinho (1970)

12  Luiz Gonzaga do Nascimento (1912-1989). Músico brasileiro, sanfoneiro, cantor e compositor foi responsável pela valorização de ritmos nordestinos. Levou o baião, o xote e o xaxado para todo país. Ficou conhecido nacionalmente como Rei do baião.  Informações veiculadas na página oficial do artista na internet www.luizgonzaga.mus.br .  Ver sobre a contribuição de Gonzaga para música brasileira ver: Fonteles, 2010.

13  Cícero Romão Batista (1844-1934) é considerado um dos principais ícones religiosos do Brasil. Nascido no Crato, Ceará, em 1844, atuou como sacerdote e político. Em 1898 foi suspenso da ordem pelo Papa Leão XIII, acusado de mistificação e heresia. Sua fama de milagreiro lhe valeu o reconhecimento como santo entre as camadas populares

14  O cangaço é considerado uma manifestação do banditismo brasileiro surgido no século XVIII na região Nordeste. Virgulindo Ferreira da Silva (1987-1938), vulgo lampião, foi o líder mais expressivo do cangaço brasileiro. Para saber mais Ver: Chiavenato,1990.

15  O samba enredo é uma modalidade de samba composto especialmente para o desfile de carnaval e que relata o enredo que será desenvolvido no desfile por cada uma das escolas de samba através  de alegorias, fantasias; musicas,    Para saber mais Ver: Cavalcanti,1995.

16  O Jagunço é considerado um tipo de Cangaceiro, que atua sob o comando e proteção de indivíduos influentes (p. ex,. fazendeiros, políticos) para cometer atos criminosos e ilícitos.

Citation   

Eufrázia Cristina Menezes SANTOS, «Arte, ritual e brincadeira nas performances das quadrilhas juninas», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Théma, mis à  jour le : 19/12/2016, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1436.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Eufrázia Cristina Menezes SANTOS

Eufrázia Cristina Menezes SANTOS é Doutora Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2006) e mestra em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (1998).. Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões afro-brasileiras, festa, ritual e cultura popular.