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Margens do mundo: devoção barroca na Festa de São Benedito

Giovanni CIRINO
décembre 2016

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1432

Résumés   

Résumé

Cet essai cherche à articuler le contenu de la Congada pratiquée dans la commune d’Ilhabela (littoral Nord de l’État de São Paulo) et des questions considérées comme universelles dans la littérature. Cette articulation se focalise sur les particularités de l’agencement dans l’espace et dans le temps de dualités organisées lors de la mise en scène – au sens propre du terme -, en cherchant des associations avec la théorie de la performance, l’ethnoscénologie et l’anthropologie de la performance. On se concentrera sur les éléments expressifs des falas (répliques),en cherchant des liens entre les processus historiques, les relations de pouvoir et les formes de ressignification.

Abstract

This essay seeks to articulate the contents of congada performed in the city of Ilhabela (north coast of São Paulo) with some themes considered as universal in literature. This articulation focuses on the particularities in dualities’ layout organized spatiotemporally in staging, seeking associations with the theory of performance, Ethnoscenology and the anthropology of performance. This essay focuses on the expressive elements of speech, seeking links between the historical processes, power relations and ways of reframing.

Resumo

O ensaio procura articular o conteúdo da congada apresentada no município de Ilhabela (litoral norte de São Paulo) com alguns temas considerados universais na literatura. Tal articulação enfoca as particularidades na disposição de dualidades organizadas espaço-temporalmente na encenação buscando associações com a teoria da performance, a etnocenologia e a antropologia da performance. Enfoca-se neste ensaio os elementos expressivos das falas procurando nexos entre os processos históricos, as relações de poder e as formas de ressignificação.

Index   

Index de mots-clés : fête baroque, Saint Benoît, catholicisme populaire, indexation, convention.
Index by keyword : baroque feast, St. Benedict, popular catholicism, indexing, convention.
Índice de palavras-chaves : festa barroca, São Benedito, catolicismo popular, indexação, convenção.

Texte intégral   

A Festa Barroca de São Benedito no contexto colonial brasileiro

1Por sua tradição que remonta entre século e meio a dois séculos, a Festa de São Benedito1 que se realiza em Ilhabela (litoral norte de São Paulo) é um acontecimento que nos remete às festas e celebrações do período colonial. Fundadas sobre a tríade – a matriz barroca, a centralização política do Estado moderno e a defensiva da Contra-Reforma – as festas que ainda hoje se fazem, herdeiras das festas coloniais, devem ser contextualizadas também dentro das questões ligadas ao poder (Araújo, 1993; Souza, 1994; 2002; Del Priore, 1994; Jancsó & Kantor, 2001). Devem também ser consideradas a partir de uma série de práticas simbólicas distribuídas em diversas formas culturais que conservam seus elementos constitutivos, muito embora, na maioria das vezes ressignificados em outros contextos.

2O caráter barroco inscreve-se em diversos aspectos. Enquanto linguagem artística desenvolve-se entre a segunda metade do século XVI e o início do século XVII, período em que se privilegia a noção de progresso e da razão. O barroco vem a ser uma espécie de expressão simbólica dos aspectos recalcados (como a sensibilidade e o subjetivo), exacerbando as contradições e constituindo uma ruptura radical com as ideias relacionadas à visão de mundo. Segundo Eugénio D’Ors, o Barroco é concebido como aeon, uma constante, que pode ser latente ou manifesta, relacionada à sinuosidade dionisíaca (em oposição à linearidade apolínea). As expressões do barroco manifestam formas linguísticas capazes de denotar identidade e diferença simultaneamente, representando dessa forma experiências intensas e contraditórias. São esses aspectos do caráter barroco que se encontram presentes na festa dedicada a São Benedito.

(...) parece possível dizer que, se a festa colonial funde num mesmo todo a força do Estado e Igreja para dá-la a ver pela performance graças à qual a celebração tem existência como espetáculo do poder, seu caráter barroco confere, no entanto, uma conotação peculiar à linguagem pela qual essa fusão se evidencia (Grifos da autora. Montes, 1998: 148).

3Esta linguagem é o âmbito no qual as hipóteses perseguidas por este ensaio se encontram. Os elementos expressivos – como a música, o canto, os ritmos, a linguagem corporal, as cenas, as falas2do entrecho – têm a capacidade de dar uma existência ao caráter barroco. Absolutamente evidente quando se observa, por exemplo, as procissões barrocas que realizavam a afirmação da monarquia portuguesa.

4Nos desfiles realizados no Brasil colonial (1500 – 1808), o reinado do Congo – como outros reinos conquistados e cristianizados pelos portugueses – era apenas uma parte integrante do desfile em que se faziam representar outras instituições do mundo colonial como as irmandades, os ofícios, as autoridades civis e eclesiásticas, enfim, a imagem do “corpo místico”.3Através do desfile a procissão barroca foi responsável por expor e evidenciar a transformação do sentido sacramental para o jurídico do corpo místico. No entanto, no que tange as etnias colonizadas, fora do desfile o escravo negro cristianizado continuava sem lugar definido. Ao mesmo tempo, a ideia do corpo místico é transposta para a comunidade, sendo o Rei o representante máximo da unidade, harmonia e justiça (Monteiro, 2011).

5O Estado absolutista português se constitui com a missão de propagação do cristianismo e a conversão do infiel. Este projeto messiânico do Estado ganhou reforço com a instituição do Padroado4 que dava o direito ao Rei de exercer atividade missionária em nome da Santa Sé. A propagação da fé é justamente o fundamento da guerra justa na qual interessa a causa, a despeito de sua instrumentalidade jurídica, dando a possibilidade de ser utilizada como justificativa das mais variadas situações contraditórias.

6Tanto a procissão quanto a festa barroca são articulações que exprimem a maneira que o Estado tomou para si a responsabilidade da sua missão imperialista e projetou suas práticas. Os reinados, enquanto parte integrante dessa representação maior do Estado absoluto, compartilham a idéia de uma representação de poder. O cortejo, por sua vez, reproduz o corpo místico do Estado através da apresentação de forças sociais e espirituais por meio da manipulação dos signos materiais, plásticos e sonoros, “articulados a partir de uma sintaxe própria em termos de tópicas retóricas tradicionais. A festa barroca propaga um conceito realizando-o na prática” (Idem, 79). A prática dos agentes determina as formas de ressignificação que as tópicas tradicionais ganham em novos contextos. Nesse sentido, os elementos expressivos – como, por exemplo, a fala, o som, a música, as coreografias – que ganham espaço nessas formas de representações são aspectos imprescindíveis para o entendimento das relações entre texto e contexto no projeto místico e messiânico português.

7Trabalha-se com a hipótese de que os elementos expressivos preservam certos aspectos dos sentidos conformados. Tomando indexação como o processo no qual um código se constitui pela associação estabelecida entre uma parte do campo semântico de categorias provenientes de contextos simbólicos distintos, prevalecendo aquelas com maior capacidade de generalização (Sahlins, 2008), procuramos enfocar algumas expressões produzidas em contextos específicos entendendo-as como indexações. O estabelecimento de tais sentidos são convencionados a partir de indexações específicas, provenientes de universos simbólicos heterogêneos, como será explicitado mais adiante.

8Supondo que a linguagem da festa barroca de São Benedito articula fragmentos e vestígios da visão de mundo dos reinos subjugados, intenta-se neste ensaio enfocar os elementos expressivos das falas da Congada5procurando neles alguns nexos entre os processos históricos, as relações de poder e as formas de ressignificação.

Contexto representado e contexto da representação

9A Congada é descrita por seus praticantes como a representação de uma guerra entre os “infiéis” ou “mouros”, que comporiam o exército do Embaixador de Luanda, e os cristãos que formam o exército do Rei de Congo. Cada um dos exércitos ocupa um ponto, mais ou menos a 40 metros de distância um do outro, sendo campo de “batalha” o espaço compreendido entre os dois exércitos. A encenação acontece em três momentos, são os três bailes, com duração de aproximadamente 40 minutos cada.

10A maneira que os praticantes se referem à Congada6 ajuda também a entender aspectos supostamente residuais, porém muito presente na memória das pessoas. Ao mencionarem o Rei é muito comum que o fazem no plural e/ou no feminino “minha Reis” ou “o Reis”. Interessante notar também que existe uma porosidade entre o conteúdo dos “mitos de origem” e os conteúdos das falas dos personagens na congada.

11Interpretações recorrentes entre os praticantes da congada de Ilhabela podem ser conflituosas quando cotejadas com as falas dos personagens da encenação. Menos do que procurar as “verdadeiras” interpretações, nossa intenção neste ensaio é apresentar uma parte do entrecho, falas de personagens e interpretações já difundidas, tanto na literatura quanto nas narrativas dos interlocutores. 7

12Ao atentar para as falas percebemos diversos trechos que se repetem ao longo dos três bailes. A partir da comparação dos trechos únicos com aqueles que se repetem ao longo dos bailes somos induzidos a pensar que os diversos eventos apresentados na congada são encenados de maneiras bastante semelhantes entre si, mas que dificilmente poderiam reproduzir exatamente os contextos históricos, nem estabelecer coerências cronológicas. O “texto”8 encenado é uma composição estética que parece ter sido produzida a partir de eventos históricos, porém trata-se de uma montagem, uma nova elaboração, um fictio.

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Fidalgo do Rei dando sua embaixada, em primeiro plano Rei e Rainha sentados, ao fundo se vê o exército de baixo

© Giovanni Cirino

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Evoluções dos Fildalgos (de azul)

ao meio e os Congos (de vermelho) ao reu redor

© Giovanni Cirino

13Ao perguntarmos para as pessoas que assistem, e até mesmo para as pessoas que protagonizam, a interpretação unânime sobre o enredo da congada é feita grosso modo da seguinte maneira: o exército de cima (do Rei do Congo) é visto como cristão e o exército debaixo (do Embaixador de Luanda) como o infiel, muito embora não se tenha muito claro os motivos do embate. No entanto, essa interpretação às vezes parece contraditória quando nos detemos em falas específicas do Rei, Embaixador e alguns outros personagens. No sentido de ressaltar algumas dessas supostas contradições apresentaremos mais adiante o Primeiro Baile.

14A Congada é uma manifestação que se realiza em diversos lugares do Brasil de maneiras bastante variadas, mas sempre relacionadas ao reinado do Congo e à devoção a santos católicos, em especial os chamados “santos pretos”, como São Benedito e Santa Ifigênia, por exemplo (Lima, [1949] 1981; Araújo, 1964; Rabaçal, 1976; Fernandes, 1977). A Congada é a principal expressão de devoção a São Benedito. É devido à Congada que se faz a festa como um todo. Todos os elementos e aspectos da festa estão relacionados à Congada e ao santo. A Congada que se apresenta nas ruas de Ilhabela (litoral norte de São Paulo) durante a Festa de São Benedito tem duração de três dias e se realiza todos os anos em meados do mês de maio.

15Uma das versões apresenta o antecedente da encenação da seguinte maneira: o rei de congo teria se apaixonado e engravidado uma mulher do povo. Para a rainha não descobrir, o rei pede para a mulher deixar a cidade de Congo e migrar para Luanda onde teve seu filho. Ele teria se transformado no Embaixador de Luanda e mais tarde decidido voltar com um exército de mouros para retomar o que é seu de direito, o trono do Rei (Leite, 2012, p.9). A encenação que se apresenta na Festa contaria o momento que o Embaixador de Luanda chega na cidade de Congo e se depara com a Festa de São Benedito. O desenrolar das cenas mostram representações de embates entre os cristãos e os pagãos, tentativas bruscas de aproximação, entremeadas de falas, cantos e danças.

16Em todos os bailes apresenta-se, de maneira repetida embora não igual, o mesmo enredo: uma guerra entre o Embaixador e o Rei. Em cada um dos três bailes o Embaixador é preso, levado à presença do Rei onde, após apresentar e debater suas razões, se arrepende de seus atos e pede perdão. Ao longo dos bailes o Rei descobre tratar-se de seu filho, criado em outro reino, e resolve perdoá-lo. Os participantes podem ser divididas em dois grupos: aqueles que encenam personagens do entrecho e aqueles que encenam como “figurantes” sem falas específicas. Os personagens são Príncipe, Secretário, Guias de Baixo, Guias de Cima. Os protagonistas são o Rei de Congo e o Embaixador de Luanda. Cada um é o líder de um dos exércitos. Os “figurantes” seriam, de um lado, os Fidalgos do Rei, o exército cristão e do outro, os Soldados de Baixo compõem o exército do Embaixador.

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Rei e Rainha. Atrás do Rei marimba e atabaques e a audiência

que assiste atenta as evoluções dos Congos

© Giovanni Cirino

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O Embaixador de Luanda ataca, espadas se chocam,

os Fidalgos defendem o Rei do inimigo invasor

© Giovanni Cirino

17Cada um dos três dias é uma espécie de modelo miniatura e concentrado do ritual que representa a Festa como um todo. Em cada um dos três dias se repetem, de maneiras diversificadas, os mesmos ritos que caracterizam as atividades dos núcleos que compõem essa grande manifestação de devoção ao santo. A Festa é amarrada em torno de dois principais eixos: a Ucharia9 e a Congada. Além desses, outros são igualmente importantes e compõem as atividades que são refeitas todos os anos em meados de maio.

18Isto posto, passamos ao Primeiro Bailecomo um exemplo fractal da Congada tomada em seu sentido de expressão do poder e da linguagem barroca. Com a palavra, os personagens de uma guerra que se faz em festa, a organização da cena e do universo.

Primeiro Baile

19A encenação da congada se inicia com um diálogo entre o Rei, seu Secretário e o Príncipe. Na primeira fala da Congada, o Secretário do Rei lembra o soberano que aquele é o dia de festejar em louvor a São Benedito. O Rei reconhece seu esquecimento e fica agradecido pelo Secretário tê-lo lembrado da data. Além disso, ele pede para o Secretário convidar a todos para a festa e ainda fala para o Príncipe reconhecer o Secretário também como filho do Rei. O Secretário responde então que deve lembrar o Príncipe e menciona os nomes de outros Fidalgos: Dão Francisco, Dão Antônio e Dão Manuel. O Rei menciona “Roldão” e aquele “de sobrenome Oliveira”. Em seguida todos os Fidalgos em coro respondem estar juntos e obedientes às ordens do Rei.

20O Rei se desagrada com seu filho Príncipe. Ao ver que o Secretário tem a iniciativa de avisar o Rei sobre o dia da Festa de São Benedito, este julga seu filho pouco religioso. Após este “acerto de contas” entre o Rei e o Príncipe, parece evidente que este último – à semelhança de seu pai – também não lembrava ser aquele o dia de festejar o santo. As cenas traduzem contradições: como esta informação poderia ser interpretada? Seria este um reino realmente cristão e engajado na prática da devoção aos santos católicos ou seria este um reino recém e/ou mal convertido? Que tipo de rei cristão (e seu Príncipe) esquece o calendário sacro?

21Depois desta cena de introdução os Fidalgos do Rei prosseguem com as embaixadas. A este momento se referem: dar embaixada.10Em Ilhabela, as embaixadassão as falas dos Fidalgos em frente ao Rei em louvor a São Benedito e outros santos. Todos os Fidalgos têm a sua embaixadae podem inclusive dar mais de uma embaixada, que são ditas em tom declamatório no início de todos os bailes. Observa-se com frequencia a repetição de embaixadas, a mistura com versos das falas, a utilização de falas como embaixadas, bem como produção de ênfases através da repetição de determinados versos. É regra, no momento de dar a embaixada, o Fidalgo sair de sua fileira desembainhando sua espada enquanto pede “Soberano Rei de Congo dai licença pra minha embaixada apresentar?”, o Rei por sua vez, invariavelmente responde “Conforme sua determinação que seja logo sem tardar”.

22Depois de declamadas as embaixadasos Fidalgos falam em coro que estão empenhados na batalha, aguardando “que de Deus venha o perdão” e se dizendo dignos de São Benedito. Esta fala em coro se repete em todos os bailes. O Rei responde convidando todos a louvar o santo. Frequentemente as falas são finalizadas com o pronunciamento enfático: – Abulo!! O termo abulo, sempre utilizado ao final de uma “fala”, tem o sentido de imperativo, confirmando a palavra. Poderia ter vindo a partir do verbo abular, cujo sentido seria o ato de selar com bula ou selo de chumbo. O sentido de bulase relaciona com o antigo selo de ouro, prata ou chumbo, pendente de documentos emitidos por papas e outros soberanos, e que resultava da compressão do metal entre dois cunhos. No sentido eclesiástico de bulatemos a carta pontifícia de caráter especialmente solene, sendo o termo bula da cruzada conhecido por se tratar das indulgências a quem contribuía com armas ou dinheiro para combater os infiéis.

23Neste Primeiro Baile, segue-se uma dança com marimba e atabaques11 tocando. A partir da formação inicial os Congos12 do Embaixador fazem evoluções andando e cantando em duas colunas em volta dos Fidalgos. Somente após esta coreografia que o Embaixador se apresenta. Contrariando o que se poderia esperar a partir das interpretações consensuais, o Embaixador entra de maneira completamente diferente (e até oposta) ao Rei, e em sua primeira fala se dirige a seus soldados dizendo que é o dia de louvar São Benedito.

24Na interpretação consensual feita pelos praticantes em diversas entrevistas pessoais, o Rei e seu exército são entendidos como cristãos e o Embaixador e seu exército como os infiéis. Tal posicionamento parece discutível quando atentamos para as falas dos personagens. Como os cristãos esquecem o dia da festa do santo? Por outro lado, como podem os infiéis não só saberem a data, mas entrarem louvando o santo? E mais, como podem se colocar a favor desse louvor ao santo já que são infiéis? Estaria o Embaixador fingindo determinada condição e dessa forma forjando uma identidade por motivos estratégicos? À parte dos exércitos serem cristianizados ou não, ambos parecem pretender entrar em guerra louvando ao santo. Esta seria talvez a única condição que aproxima os dois exércitos neste momento inicial: se guerreia por devoção, ao mesmo tempo em que a guerra é uma forma de louvor? Em seguida, após o Secretário perguntar que música é aquela, o Príncipe responde dizendo que aquele é o sinal de que a guerra está declarada.

25Príncipe e o Secretário disputam pela preferência do Rei na dianteira na batalha. No entanto, o Secretário considera a legitimidade do Príncipe. A guerra parece algo inevitável. O Príncipe então concorda com o Secretário e se coloca a disposição para tomar a frente de batalha.

26Os congos fazem evoluções, marimba e atabaques tocam, o Príncipe tenta se aproximar do Embaixador. De repente a música pára e o Secretário suspende a peleja. O Guia (ou Cacique) do Embaixador toma a frente do diálogo, mas o Secretário não quer falar com ele, e sim com o Embaixador. O Embaixador resiste à prisão. O Secretário insiste e manda o Guia do Rei (ou de Primor) buscar a corrente para aprisionar o Embaixador. A marimba e os atabaques voltam a tocar enquanto o Guia, dançando, vai até o Rei. Chegando aos pés do monarca, pede a corrente. O Rei diz ao Guia que ordena o Príncipe e o Secretário trazerem o Embaixador preso. O Guia recebe a corrente (simbolizada por um lenço) e ao voltar para o campo de batalha é interpelado pelo Guia do Embaixador que tenta impedi-lo, mas não consegue. O Embaixador recebe então a “voz de prisão” do Príncipe.

27O Embaixador resolve se entregar e se deixa prender, mas não sem antes resistir e provocar o Príncipe, o Secretário e o Guia do Rei. O Embaixador, então, se dirige aos seus Congos e fala triste sobre sua rendição. Apesar da renuncia à guerra parecer estranha para um exército que vem justamente para a tomada do reino, o Guia do Embaixador dá uma pista do que está acontecendo.

 – Vai engana vai, vai e não tema a morte,/ Que os braços nos afastem/São todos braços fortes/ pra te livrar da morte.

28Ngana ou engana? Angana: senhor, senhora; mulher do senhor. Em quimbundo ngana também tem o sentido de “senhor”, “patrão”, “dono”. “Engana”, bem como uma possível variação “angana”, também aparece em outros versos – e até em outras congadas da região com o mesmo sentido, “senhor, senhora” (Lima, 1981, 94) –, mas não necessariamente possui sempre este mesmo sentido. No verso acima, pode muito bem ganhar o sentido de “senhor”. Fica o rastro, mesmo não evidente, que a renuncia à guerra pode tratar-se, ao mesmo tempo, de uma estratégia para se aproximar do rei. O Embaixador e seu Cacique então vão presos, forma-se um quadrado de espadas ao redor, ambos vão sendo conduzidos ao Rei enquanto soa o canto conhecido como o Hino da Congada acompanhado de atabaques e marimba.

29O Embaixador vem lentamente, de cabeça baixa, triste, com sua capa levada aos olhos como um lenço que enxuga suas lágrimas. Ao chegarem, a música é suspensa, o Rei pede explicações sobre a guerra. Finalmente frente-a-frente com seu opositor, o Rei pergunta:  – Quem sois vós? Mas o Embaixador não responde. O Rei repete a pergunta e novamente o Embaixador não responde. Ao dar as costas para o monarca, este grita a pergunta pela terceira vez. O Embaixador então responde – Amim cambimba re lhe atiro! O Rei não entende e ordena que o Embaixador fale um português bem declarado. O Embaixador pede que abaixem as armas e declara que deseja apenas falar com o Rei. Para isso pede que seja solto da corrente.

30Então o Rei ordena libertar o Embaixador. A pergunta repetida três vezes é intrigante. Porque o Embaixador demora a responder? E porque responde em “outra língua”? Qual língua seria? Seria o quimbundo, a língua dos ambundos, povos que ocupavam a região de Angola, já que o Embaixador se diz “de Luanda”? E qual seria o significado dessa resposta? Sem responder à pergunta que o Rei lhe dirige por três vezes, o Embaixador pede para abaixar as armas dos missongos, os capangas. Depois de ser levado ao Rei e apresentado como um Fidalgo, o Embaixador inicia sua “negociação” com o Rei. A explicação um tanto controversa para quem está em pé de guerra, leva a diversos desdobramentos.

31O Embaixador afirma que está em busca de amparo e não de guerra. Por isso, mesmo sendo atacado, o Embaixador ordena seu exército festejar ao invés de guerrear. Em seguida ele afirma que mesmo sem batismo, crê em Deus e em São Benedito. Ao ver que o Embaixador também é devoto, o Rei manda soltá-lo. O Secretário fica contrariado com a ordem do Rei, mas o Príncipe acata. O Embaixador, agradecido pela ordem de soltura, reconhece o Rei como monarca e lhe oferece a “arma” (ou alma), a vida e o próprio coração. O Príncipe então sugere que lhe dê um prêmio. A tal sugestão segue-se o seguinte diálogo entre o Rei e o Embaixador.

Rei

Toma lá essa durumbamba

como a prenda de Mombique,

se mais tivesse mais te daria,

conte em baixo de prisão

que gente trazes?

Embaixador

Gente boa, muito mimosa,

escolhida por minhas mãos,

são cravo, jasmim e rosa.

Rei

São bons soldados ?

Embaixador

Tudo flor de maçangana e não me engana.

Rei

Se for flor de maçangana que não te engana

manda vir tua gente

que com eles quero ver meu coração bem contente. Abulo!

32Chama atenção neste trecho do diálogo diversos aspectos, a começar por algumas palavras estranhas ao vocabulário coloquial. A durumbamba (ou zurumbamba) que o Rei oferece é uma espada, presenteada em cena. Além do ato da dádiva também representar a aliança entre os oponentes, o objeto doado representa também uma importante insígnia de poder. Nei Lopes (2003) não fornece muitas informações sobre este vocábulo supondo ser uma palavra de origem banta. Já a palavra mombique pode ter pelo menos três derivações, “mumbica” adjetivo que significa magro, raquítico, mal-vestido, do kikongo mbika, abandonado; “mobica” que significa escravo alforriado, do quimbundo mubika, escravo; e “mambuk” que era o nome do cargo criado para ordenar o comércio com os europeus (Souza, 2002: 343). E maçangana por sua vez é um topônimo, grafado na literatura como Massangano, região localizada em Angola no entroncamento do Rio Lucala com o Rio Cuanza.

33O Rei se interessa pelo exército de seu novo aliado. Embaixador diz que trata-se de muito bons soldados, escolhidos por suas próprias mãos, são flor de maçangana. Pela sequencia do diálogo, percebe-se que os soldados dessa região são valorizados enquanto ótimos soldados. Mas o que teriam de especial esses soldados? Ao pedido do Rei, o Embaixador atende mandando o Guia voltar ao seu exército e ordenar que todos subam cantando alegremente, e não se assustem com o perigo pois o perdão já lhe fora dado em louvor a São Benedito. O Guia vai dançando em direção ao exércitode baixo, mas muda de ideia no meio do caminho e volta dizendo que não queria desse jeito, preferia que o Embaixador fosse pra cima do Rei mesmo que voltasse todo estraçalhado. Ao responder, dá uma carreira no seu Guia.

34Mais uma vez, marimba e atabaques voltam a tocar. Mesmo tendo recebido a durumbamba e o perdão do Rei, o Embaixador poderia estar blefando, querendo na verdade se ver livre do jugo o mais depressa possível. No fundo sempre fica a dúvida. O Guia então atende o pedido de seu general, passando suas ordens ao exército que sobe cantando. A letra da canção faz referência à zurumbamba, a espada de ouro.

35Ao receber seu exército, o Embaixador diz que mandou chamar para cantar o anglo rebolo – canção de arrependimento e pedido de perdão – no pé do monarca em sinal de agradecimento. Esta música é cantada com todos os Congosde joelhos ao pé do grande monarca. Ao redor, os Fidalgos acompanham tudo de perto. O que seria o anglo rebolo? Qual exatamente teria sido o pecado para o qual o Embaixador deve pedir perdão? Nesta cena solene, supõe-se o respeito ao Rei que proclama ter aceito o pedido de perdão, e ainda complementa que formou-se uma demudança em seu peito que o deixa alegre como coisa que já dança.

36Qual seria a demudança que o Rei se refere? Seria o perdão do Embaixador? Estaria o Rei falando de sua própria conversão? Estaria o Rei aludindo ao fato de que fora do cristianismo não há esperança e salvação, afinal no fundo do mar não cantam sereias encantadeiras? Ou o fundo mar faz alusão à morte? O perdão é concedido enquanto dádiva neste Primeiro baile. Com o agradecimento à bonita oferta do Rei, o Embaixador aclama doravante aquele como o motivo de toda a festa.

Indexação e convenção

37Segundo Monteiro (2011, p.62) nas sociedades escravagistas modernas surgem diversas formulações institucionais, políticas e ideológicas originais a partir de elementos pertencentes à cultura do colonizador e do escravo. Os reinados de congo são tomados pela autora como um caso representativo dessas formulações. Nesse sentido, diversas hipóteses podem ser levantadas a respeito desse “(...) encontro de mentalidades e de como foi sentida pelos negros a necessidade de se criar reinados de caráter devocional e artístico” (Ibidem). É sobre este encontro que se organiza uma prática e um comportamento humano espetacular (Pradier, 1998) específico na Congada. Certamente a Congada de Ilhabela realizada na Festa de São Benedito é uma forma espetacular de organizar o mundo, definido a priori, dividido entre “os que pertencem à verdadeira religião” e os “mouros, infiéis, entregues á religião de Maomé”. Essa bipartição se replica em diversos outros aspectos pertencentes ao universo representado e apresentado nas ruas da Vila. Esta maneira de organizar um comportamento humano espetacular rearticula os elementos ligados ao poder (Idem, 60), dando forma a uma ontologia e refazendo circuitos longínquos da Antiguidade, passando por todas as grandes religiões, pelo pensamento filosófico e boa parte da literatura ocidental “clássica”, de Homero a Ésquilo, de São Tomás de Aquino a Erasmo de Roterdam, de Dante Alighieri a Shakespeare, de Cervantes a Goethe, de Camões a Guimarães Rosa: o bem e o mal.

38Na noção moderna do corpo místico – menos ligada ao mistério da presença do corpo de Cristo na hóstia, menos sacramental e eucarística, e mais sociológica e jurídica – o negro escravo, mesmo batizado, não encontra lugar na organização da sociedade cristã e na jurisdição dos diversos corpos que compõem o corpo místico. O Primeiro Baileilustra a organização da cena, do conflito, o embate, as vacilações, os jogos, e no final o pedido de perdão. O negro é protagonista na cena e em cena : um lugar duplo.

39A lógica da organização cênica e dramatúrgica da Congada apresenta particularidades na maneira que organiza a expressão. Como se organizam as práticas e comportamentos humanos espetaculares na Congada? A especificidade da organização das dualidades fundamentais (essência/aparência, bem/mal, cristão/pagão, aliado/inimigo, dentro/fora, certo/errado, estreito/largo, raso/profundo, grave/agudo, quente/frio, etc.) dentro da representação da guerra – seus dois exércitos, dois comandantes (o Rei e o Embaixador), cada um com seu território, seu campo de batalha – e como esta é realizada em forma de festa, representa o universo do rei e do corpo místico, a vitória da Lei de Cristo, o arrependimento do paganismo. Dessa maneira de organizar a Congada, portanto, deriva ainda mais uma dualidade: guerra e festa, um par diretamente ligado a um contraste que é vivido naqueles dias de maio todos os anos. Nessa chave, tanto os comportamentos dos sujeitos em suas versões “congueiro” (Fidalgo ou Soldado) quanto a presença do corpo, se mostram como um modo de ser e existir (Cánapa, 2001, 16), uma identidade contrastante, um modo de ser congueiro, ser devoto a São Benedito.

40O título deste ensaio remete a uma passagem discreta e pouco emblemática da música cantada na Missa de São Benedito celebrada durante a realização da Festa: Estamos chegando das velhas senzalas./Estamos chegando das novas favelas./ Das margens do mundonós somos,/viemos dançar [Canto de Entrada, Missa de São Benedito, 2009].

41As margens do mundo são representadas no cortejo. No corpo místico transposto para a comunidade, na qual o representante máximo é o rei e não Cristo, a realização da justiça é obra terrena e não divina. O cortejo barroco dá expressão ao corpo político e social manifestando também o elogio à expansão colonial e à legitimidade das guerras, conquistas e conversões. O Primeiro Baile ilustra a guerra justae a fusão de universos e mentalidades. Uma entre negros escravos e os brancos colonizadores, outra entre Estado e Igreja .

42Nesta última, se evidencia o que Maria Lúcia Montes chama de uma experiência marcada pelo contraditório e pela integração precária de metades indissociáveis de uma realidade moderna e arcaica. Nesse sentido, a busca pela restauração de uma ideia de ordem se faz sob o signo da contradição: de um lado o sentimento moderno do poder criador do indivíduo e de outro, o sentimento arcaico de sua limitação frente a um mundo que escapa ao seu controle (Montes, 1998).

43A estética do barroco funda-se no lúdico, enquanto sentido de jogo e força criativa que recombina constantemente elementos de lugares e épocas diversas recriando o arcaico (Ávila, 1994). O barroco emerge surpreendentemente na linguagem utilizada pelos protagonistas e coadjuvantes da Congada de Ilhabela. Na literatura, a utilização das metáforas, a ordem indireta do discurso, a linguagem preciosa e as volutas verbais são as correspondentes ao gosto pela profusão, o ornamento excessivo e o horror do vazio nas artes plásticas.

44Na outra fusão (do negro escravo e do branco colonizador) a Festa de São Benedito revela-se como uma formulação institucional, política e ideológica original, o resultado de uma relação entre agentes que se constitui enquanto uma convenção de significação que funde universos e mentalidades heterogêneas. Tal processo se produz no cotidiano do encontro dos agentes situados e que carregam universos de sentidos específicos. Como resultado desse encontro, as representações de poder de natureza teológico-política são interessantes para observar a produção de convenções a partir de determinadas indexações.

45O código que circulou nas missões – como resultado da relação dos agentes e da indexação de categorias locais ao universo cristão – também vai sendo reorganizado em novas conjunturas com o passar do tempo e em lugares diferentes. Como bem mostrou Marshall Sahlins ([1985] 1999), isto é uma qualidade inerente a processos de produção de convenções em eventos e performances.

46Na medida em que abriu-se mão da caracterização dos agentes indexadores, bem como da grade de leitura manipulada pelos missionários (primeiro na África e depois no Brasil), atemo-nos à própria Festa como “resultado” de um processo (uma convenção), e seus materiais expressivos como “dado empírico”. Não se trata de reconstituir fatos históricos, mas uma tentativa de tatear o processo de indexação através das pistas que remetem a dados históricos. Quer-se crer que estes rastros permitem evidenciar a atualidade das guerras ocorridas em Massangana, retirando tais fatos do passado e relacionando-os aos dramas sociais da Ilhabela e do Brasil.

47A Festa que se celebra todos os anos em Ilhabela se configura como uma constelação de significações saturada de tensões acumuladas em séculos de fatos ocorridos. A Festa busca reviver o passado diversas vezes todos os anos. A análise busca fazer desse passado uma experiência única. Na constelação imobilizada e cristalizada pode-se encontrar uma oportunidade para lutar por um passado oprimido e também para “extrair uma época determinada do curso homogêneo da história” (Benjamin, 1994, 231).

48É a linguagem da Festa que constrói, através da trama complexa dos significados, a força do Estado e da Igreja. Nela a performance do espetáculo do poder se mostra e se publiciza. A Festa é, ao mesmo tempo, demonstração de poder elaborada por técnicas sofisticadas e diversificadas, mas também uma maneira peculiar de combinar e recombinar os seus conteúdos simbólicos. A Festa tem a capacidade de dar existência material, corpórea, linguística, visual e sonora ao caráter do barroco.

49Esta rápida descrição do Primeiro Bailetalvez possa não ter sido suficiente para denotar a amplitude histórica da Festa, mas acreditamos ser o bastante para perceber o embate – e sua organização espetacular no espaço da cena – como algo carregado de múltiplas camadas de significações. Intenta-se investigar tais camadas considerando os elementos expressivos enquanto mediadores dos sentidos convencionados nas margens do mundo, e a própria Festa de São Benedito enquanto o resultado de uma convenção.

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Notes   

1  As histórias sobre as origens de Benedetto Manasseri divergem. A versão mais recorrente diz que ele teria nascido na Sicília (sul da Itália), outra diz que era descendente de escravos oriundos da Etiópia e em uma terceira versão ele teria origem no norte da África, neste caso tendo origem “moura” e não etíope. Aquele que se tornou o Santo Benedito, teria nascido na cidade de Messina na Sicília (Itália) em 1525, sendo filho de um escravo africano trazido por negreiros ibéricos. Benedetto Manasseri teria pertencido a uma ordem de frades menores, capuchinhos de regra franciscana, do convento de Santa-Maria-di-Gesú, próximo à cidade de Palermo (cf. Alencastro 2000: 314). Benedetto teria vivido neste convento exercendo tarefas humildes como a de cozinheiro e teria morrido com fama de santidade em 1589. Muito cultuado no Brasil pelos escravos, foi beatificado em 1743, canonizado e santificado em pleno regime escravista em 25 de maio de 1807, muito embora seu processo de canonização tenha começado cinco anos após sua morte em 1594. A fama de Santo Benedetto, il Nero, difundiu-se a partir do Seiscentos no Mediterrâneo e, sobretudo, na Espanha e em Portugal. A Irmandade de São Benedito teria sido criada em Lisboa em 1619 por mouros e negros convertidos. Seu culto teria sido levado pelos franciscanos enraizando-se em Angola com facilidade, talvez por ser São Benedito o primeiro referente de santo católico negro no contexto dos Descobrimentos. Não há registro sobre a época em que seu culto teria sido levado para Ilhabela.

2  Os termos “falas” e “texto” serão utilizados em referência ao conteúdo dos diálogos presentes no entrecho da congada conforme realizada na Festa de São Benedito em Ilhabela. A utilização destes termos, bem como seu grifo, decorrem do significado específico, remetendo não apenas à fala de um personagem, mas a fala de um ancestral ente intérprete que emerge cada vez que o papel é novamente representado. Muito úteis para este trabalho foram as transcrições realizadas por Iracema França Lopes Corrêa (1981), Haydeè Dourado de Faria Cardoso (1982; 1990), bem como a transcrição realizada a partir dos manuscritos do então Rei Dito di Pilaca. Somando-se a esse corpus de dados sobre o enredo da congada, ainda utilizei como material comparativo as transcrições de outras congadas semelhantes presentes em Rossini Tavares de Lima ([1949] 1981), Alceu Maynard Araújo (1964), João Alfredo Rabaçal (1976), José Loureiro Fernandes (1977).

3  Corpus myisticum, corpo místico de Cristo ou apenas corpo místico é o nome dado á Igreja Universal fundada por Jesus Cristo. Os fiéis, através da fé em Cristo e do sacramento do batismo, são partes da igreja e membros do corpo único, místico, inseparável e divino cuja cabeça (invisível) é o próprio Cristo e o Santo Papa a cabeça terrena (visível). Os membros do corpo místico são todos aqueles que foram batizados e se encontram no céu, no purgatório ou na terra. Os membros que estão na terra podem ser classificados em três grupos: 1) os sadios: vivem em estado de graça e por ela estão ligados a Deus vivendo sem cometer pecados mortais, graves; 2) os enfermos: batizados na vida cristã mas variam entre o estado de graça e um estado de pecados graves; 3) membros mortos: vivem em estado permanente de pecados mortais. Muitos desses foram batizados, fizeram primeira comunhão e crisma, porém nunca assumiram verdadeiramente a vida cristã com sua fé, moral e práticas doutrinais. Apesar de estarem ligados ao corpo místico, não possuem vida sobrenatural. Apoiada em Ernest Kantorowicz ([1957] 1998), Marianna M. Monteiro (2011) aponta um problema central da sociedade colonial brasileira: a fórmula do corpo místico que se pretendia ampliar com a ação missionária e os batismos em massa vinha sendo compreendida pela Igreja em termos jurídicos e não em seu sentido sacramental. Nesse sentido, ao ser batizado, o escravo se tornava membro do corpo místico (a Igreja), no entanto, no estabelecimento da jurisdição dos diversos corpos componentes do corpo místico, não tem um lugar definido (Monteiro, 2011: 71.)

4  O Padroado era o exclusivo direito da organização e financiamento de todas as atividades religiosas nos domínios portugueses e nas terras descobertas pelos portugueses. É a designação do conjunto de privilégios concedidos pela Santa Sé aos reis de Portugal e de Espanha, posteriormente também estendidos aos imperadores do Brasil. Tratava-se de um instrumento jurídico que possibilitava um domínio direto da Coroa nos negócios religiosos, especialmente nos aspectos administrativos, jurídicos e financeiros. Padres, religiosos e bispos eram também funcionários da Coroa portuguesa no Brasil colonial, ou seja, religião e religiosidade eram também assuntos de Estado (e vice-versa em muitos casos). A união indissociável entre igreja Católica e Estado (português e espanhol) marcou a ação colonizadora destes dois reinos e também as ações pastorais que visavam atrair à fé católica os povos nativos das terras conquistadas, e ainda, a luta contra o avanço do protestantismo. Foi somente em 1889 que se deu o fim do regime de padroado no Brasil. Sobre este assunto, bem como o Padroado Espanhol e suas relações com a Sagrada Congregação de Propaganda Fide vide Gonçalves (2008) especialmente as páginas 39, 44 – 52, 77 e 141.

5  Será utilizada a seguinte terminologia: quando se tratar da congada feita no município de Ilhabela utilizaremos o termo com letra maiúscula [Congada] e quando se tratar de forma genérica das diversas congadas realizadas no Brasil utilizaremos o termo com letra minúscula.

6  A Congada é encenada basicamente por homens realizando papeis masculinos. A única exceção é a Rainha, única personagem feminina no entrecho, papel representado por uma atriz. A Rainha é eleita a cada ano entre as moças da comunidade de congueiros, deve ter no máximo 15 anos e deve ser virgem. A cor do traje da Rainha é alternado a cada ano, vermelhos e azul.

7  Os interlocutores aqui referidos são os própios praticantes da Congada em sua maioria moradores de Ilhabela. A pesquisa é resultado do trabalho iniciado em 2004 para a TV – USP: produção de um documentário a respeito da Festa de São Benedito de Ilhabela. A pesquisa para o documentário Sobre a Congada de Ilhabela (Eduardo Kishimoto, TV-USP: 2004-2010) deu origem à tese Uma etnografia da devoção a São Benedito no Litoral Norte de São Paulo defendida em 2012 na Universidade de São Paulo, da qual este artigo é tributário.

8  Cf. note 2.

9  A palavra Ucharia é um substantivo feminino, cujo significado se relaciona com a despensa da casa real, o lugar onde se guardam as viandas, uma espécie de depósito onde se guardavam as arrecadações. A Ucharia na Festa de São Benedito é o núcleo responsável pela arrecadação, organização, preparo e distribuição das doações em alimentos dedicadas ao santo. A Ucharia é uma espécie de banquete cujo anfitrião simbólico é o próprio santo. Oferecido gratuitamente aos participantes, e à população em geral, nos almoços de sábado e domingo no fim de semana da Festa. Ela está diretamente associada ao mito de São Benedito e ao circuito das dádivas que se fazem em nome do santo. É em torno da Ucharia que se dá grande parte da produção material que envolve a devoção ao santo. Muitas vezes os alimentos oferecidos são tratados como abençoados e capazes de operar curas. As graças passam pela comensalidade. A Ucharia possui aspectos importantes no que diz respeito às materializações do sagrado. A Ucharia, portanto, é um núcleo imprescindível que apresenta a fartura, o excesso, a mistura de elementos em simultaneidade e a comensalidade coletiva.

10  Declaração feita por uma pessoa ou grupo investido de poder de comunicar a sua opinião ou seus desejos a respeito de um assunto importante. Em geral, nesse caso, se referindo à devoção ao santo.

11  A marimba é um instrumento musical - que se assemelha a um xilofone - feita pelos próprios congueiros; seis tabuletas de diferentes qualidades de madeira estão ligadas cabaças como caixas de ressonância. O atabaque, por sua vez, possui forma cônica. Atualmente utiliza-se os tambores comerciais convencionais.

12  Nos termos utilizados entre os praticantes, congo se refere ao vassalo do Embaixador enquanto fidalgos aos vassalosdo rei. De maneira genérica, se referindo a todos os praticantes utiliza-se o termo congueiro.

Citation   

Giovanni CIRINO, «Margens do mundo: devoção barroca na Festa de São Benedito», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Théma, mis à  jour le : 21/12/2016, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1432.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Giovanni CIRINO

Giovanni Cirino é Professor na Universidade Estadual de Londrina, membro do Núcleo de Antropologia da Performance e Drama [NAPEDRA/USP], do Grupo de Pesquisas em Antropologia e Música [PAM] e do Laboratório de Antropologia Visual e Sonora [LAVIS/UEL]. É o autor da tese intitulada Uma etnografia da devoção de São Benedito no Litoral Norte de São Paulo no quadro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, e de Narrativas Musicais : performance e experiência na música popular instrumental brasileira.