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Mulher e Mãe (de santo): transmissão psíquica geracional e elaboração de feminilidade na « passagem do bastão »

Mariana LEAL DE BARROS
septembre 2015

DOI : https://dx.doi.org/10.56698/cultureskairos.1059

Résumés   

Résumé

Cet article présente une étude de cas dans laquelle est discutée l’expérience de la « passation du bâton» dans un terreiro d’umbanda de la région côtière de l’État de São Paulo. L’analyse se concentre sur l’expérience de Valéria, qui a hérité du terreiro de sa mère-de-saint après la mort de celle-ci. Or, cette transmission ne lui avait pas été préalablement annoncée, ce qui a rendu difficile le processus d’assimilation de ses fonctions. Les données ont été collectées au cours de trois ans d’enquête ethnographique et au moyen de nombreux entretiens realisés avec l’héritière. L’analyse propose une lecture psychanalytique lacanienne, articulée à des références théoriques sur la transmission psychique générationelle. Ainsi, apparaît-il comment l’assomption du rôle de mère-de-saint a exigé de la part de la médium une restructuration, non seulement de sa vie personelle, mais aussi de son désir, de son devenir et de sa propre féminité, une trajectoire traversée par les divinités spirituelles du terreiro.

Abstract

This article presents a case study which discusses the experience of "passing on the baton" in an Umbanda ceremonial house (terreiro), located in the coastal region of the state of São Paulo. The analysis focuses on the story of Valéria, mother of saints, who inherited the terreiro from her mother. This happened without any previous announcement, making the process of undertaking the function of mother of saints more difficult. The data were collected following the ethnographic method combined with interviews with the heir over a period of three years. The analysis is based on a Lacanian framework enriched with theoretical contributions concerning generational psychical transmission. The aim is to explain how the figure of the mother of saints implies a restructuration not only of the medium’s “concrete” life but also of her desire, of her becoming and of her femininity, namely her entire existential trajectory as it is traversed by the terreiro’s spiritual entities.

Resumo

Este artigo apresenta um estudo de caso no qual se discute a experiência de “passagem de bastão” num terreiro de umbanda da região litorânea do Estado de São Paulo. A análise se centra na história de Valéria, mãe-de-santo que herdou o terreiro de sua mãe sem que a transmissão lhe fosse anunciada previamente, o que dificultou o processo de assimilação do cargo. Os dados foram colhidos a partir do método etnográfico combinado com entrevistas realizadas ao longo de três anos com a herdeira. A análise conta com uma leitura lacaniana articulada às contribuições teóricas acerca da transmissão psíquica geracional, de modo a apresentar como a assunção do papel de mãe-de-santo exigiu que a médium reestruturasse não apenas sua vida “concreta”, mas seu desejo, seu devir e sua própria feminilidade, uma trajetória atravessada pelas entidades espirituais do terreiro. (FAPESP)

Index   

Index de mots-clés : psychanalyse, umbanda, genre, transmission psychique.
Index by keyword : Umbanda, gender, psychique transmission, psychanalyse.
Índice de palavras-chaves : gênero, umbanda, transmissão psíquica, psicanálise.

Texte intégral   

 De quantas pessoas se faz uma pessoa? Quantas experiências de vida- algumas relatadas, outras inenarráveis, umas próprias, outras alheias e remotas – compõem uma subjetividade? Quantas histórias bem contadas e quantas histórias mal contadas contribuem para uma história de vida? Quantas vozes e quantos silêncios calam no fundo de cada um de nós? (Figueiredo, 2006, p.11).

1Há muitos outros que protagonizam a constituição de quem somos e desejamos ser; estes outros, vale dizer, não são sujeitos concretos, são também imagem, sensação, algo que nos interpela e apreendemos tal como podemos ou suportamos. É no Outro que nos enredamos para sabermos quem somos1.

2Refiro-me à leitura lacaniana de sujeito que aqui tomarei como base, mas que, como sustento em minha própria trajetória, adequa-se plenamente à compreensão antropológica, disciplina capaz de contribuir com uma leitura de “eu” aberta e plural, auxiliando-nos a pensar, por exemplo, os sujeitos que se constroem tanto por meio de seus pais “reais” quanto espirituais.

3Este artigo discute o caso de Valéria, na qual, dentre tantos outros que constituem a mulher que ela é, encontramos sua mãe, as entidades espirituais de sua mãe e as suas próprias. São vários personagens que se compõem nesta história de “passagem de bastão” em um terreiro de umbanda. A proposta é apresentar e discutir como Valéria se tornou mãe-de-santo e de como aceitou essa herança que lhe foi passada sem ser anunciada. Analiso, ainda, a transição entre a Valéria que se posiciona como “mulher”, para, com a morte de sua mãe, trilhar um processo que lhe possibilita apropriar-se do lugar de “mãe”, sempre atravessada por suas entidades espirituais.  

4Trata-se de um recorte do pós-doutorado2 em que me proponho a investigar elaborações de gênero por meio da vivência de mulheres que incorporam entidades espirituais femininas da umbanda3. Os dados analisados são de registros de trabalho de campo realizado entre 2009 e 2015 na Tenda de Umbanda Caboclo Oxóssi e Maria Baiana do Morro, terreiro localizado em Itariri, região litorânea do estado de São Paulo, no Brasil. Conto, ainda, com entrevistas gravadas com Valéria ao longo de três anos, desde a morte de sua mãe em 2010. O material de análise, assim como a minha presença em campo, são pensados a partir do método etnográfico em diálogo com a psicanálise, que, neste texto, é beneficiada de contribuições teóricas acerca do processo de transmissão psíquica geracional. Assim, apresento o percurso de Valéria ao longo de três atos: a perda de sua mãe, a assunção do papel de mãe-de-santo com o surgimento de uma nova entidade espiritual, e a articulação deste processo com a elaboração de sua própria feminilidade.  

Yemanjá, leva pro mar esta saudade4

5 Conheci o terreiro Caboclo Oxóssi e Maria Baiana do Morro em 2009, numa festa de Iemanjá realizada na praia, em Peruíbe-SP. Nesta época, sua mãe, D. Anélia, ainda era a responsável pelo centro5. A princípio, não era minha intenção pesquisar este terreiro, mas fui enlaçada pela história do lugar, que, a meu ver, é tipicamente umbandista, para não dizer eminentemente brasileiro.

6 A família tem uma longa trajetória pelo espiritismo que se inicia com o bisavô de Valéria, o qual exercia uma prática espírita de cura com “garrafadas” em Iguape-SP, litoral paulista. Sr. Antônio Filadélfio Colaço produzia garrafas com fluidos compostos de água e ervas medicinais, preparadas enquanto era “regido” por espíritos “da mesa branca”6. Em seguida, sua filha começou a ter visões com espíritos desde os dois anos de idade. Mais tarde,a mãe de Anélia recebeu uma mensagem de que sua filha também seguiria o espiritismo e caberia a ela prepará-la para exercer sua mediunidade. Assim, D. Anélia frequentou centros espíritas desde pequena e com a ajuda de seus pais, construiu um espaço no quintal da casa deles para atender as pessoas e receber suas entidades espirituais. Por volta dos quarenta anos, mudou-se para Peruíbe-SP7 e transferiu o centro de umbanda que leva o nome de sua baiana8, sua principal entidade espiritual. Foi a própria Maria Baiana do Morro quem ofereceu as diretrizes a D. Anélia de como deveria construir e conduzir o seu terreiro. Com o passar dos anos, a baiana passou a defender que o centro se transformasse num terreiro de candomblé, ensinando-a a como iniciar seus filhos-de-santo nesta religião e incorporando os orixás ao panteão espiritual cultuado no terreiro.  

7Assim, os médiuns da casa foram iniciados tal como o que se entende na comunidade como “tradição” do candomblé, mas tudo fora ensinado somente pela baiana. Valéria comenta que quando começou a ter acesso à internet, buscou a respeito dos rituais praticados no candomblé e surpreendeu-se por perceber que tudo o que a baiana ensinava era tal como se pratica em “famosos” terreiros da Bahia. É o que faz com que alguns filhos-de-santo da casa acreditem que, em vida, a baiana teria sido uma mãe-de-santo da Bahia. Quando lhe contei sobre esta interpretação, Valéria referiu não saber, mas concordou que seria muito coerente, pois a baiana apresentava um conhecimento de alguém que era “de dentro” e costumava deixar “qualquer babalorixá de boca aberta”9. Era a baiana quem dizia quais eram os orixás “donos de cabeça” de cada filho e como seria feita a “obrigação” de cada um. No caso de Valéria, Maria Baiana do Morro disse que apesar de ser filha de Iemanjá com Oxóssi, era indicado que ela “fizesse sua cabeça” para Iansã; o que, como veremos, trouxe implicações para a assunção de seu papel de mãe-de-santo anos mais tarde.

8Os orixás têm presença significativa neste terreiro, sendo incorporados nas grandes festas que ocorrem ao longo do ano. Para a mãe-de-santo, o centro só não virou um terreiro de candomblé porque D. Anélia também incorporava vó Maria, uma preta-velha10 que “brigava” com a sua baiana por conta de sua influência “candomblecista”, defendendo que o terreiro fosse “só umbanda mesmo”: “Uma falava pra fazer uma coisa, a gente mudava tudo, aí vinha a outra e dizia pra não fazer nada disso”, “era uma brigaiada só”, diz Valéria. Vó Maria também pedia para rezar constantemente Ave-Maria e Pai-Nosso, e queria que tivesse menos gira de exu11, no máximo uma por ano; a baiana discordava, alegando que um terreiro sem exu não se sustenta. A comunidade, por sua vez, se esforçava para conciliar as diretrizes das duas entidades, as quais eram igualmente respeitadas.

9Atualmente, o terreiro ainda apresenta o resultado da influência destas duas mulheres espirituais que disputavam espaço no terreiro: a preta-velha, que não apenas ensinava como a umbanda deveria ser praticada, mas influenciou também na forte presença de traços católicos no ritual, como a constante entoação de “Pai-Nosso” e “Ave-Maria”, e a baiana, que ordenava a “feitura” dos santos de cabeça dos médiuns e indicava quais seriam e como deveriam ser realizadas as festas de orixás durante o ano. Segundo Valéria, há quem pense que o terreiro é de “umbandomblé”, mas para ela é “umbanda mesmo”.

10A mãe-de-santo refere se lembrar de presenciar os rituais em sua casa na infância em Iguape-SP, mas dedicou-se efetivamente à umbanda ao retornar à casa de sua mãe com sua filha ao findar de seu relacionamento, quando tinha 23 anos. A própria D. Anélia também oscilou na umbanda. Por sofrer com repetidas crises reumáticas (além da grave osteoporose e do “olho seco” que a cegou), a mãe-de-santo duvidou de sua fé em algumas ocasiões e desistiu por um período de se dedicar à umbanda. Durante seis anos, frequentou a Igreja Presbiteriana, tornou-se “zeladora” da Igreja e pediu que seus filhos também saíssem da umbanda. Valéria afirma que foi presbiteriana por três anos, assim como os demais irmãos, mas só saiu quando soube que sua mãe havia retornado à umbanda sem dizer a ninguém. Para ela, Maria Baiana do Morro foi a responsável por “colocar cabresto” em sua mãe, e trazê-la de volta à prática umbandista até o final de sua vida.  Afirma, ainda, que D. Anélia piorou muito de saúde quando saiu da umbanda, e foi Maria Baiana do Morro quem a salvou quando estava praticamente convalescendo. A baiana incorporou em D. Anélia e apontou aos presentes o que deveriam fazer para salvá-la.

11A própria comunidade também pediu a volta de D. Anélia, as pessoas a procuravam, e, a partir de então, ela retomou os trabalhos em seu terreiro. Em seguida, muda-se para Itariri-SP, região litorânea próxima de Iguape, onde constituiu o terreiro em que esta pesquisa se realiza. Apesar das dores intensas e das inúmeras cirurgias sofridas, D. Anélia não mais abandonou seu trabalho no terreiro, chegou a incorporar sua baiana sentada em cadeira de rodas, com dois braços engessados e sem poder enxergar.

12Para ocupar o cargo de mãe-de-santo neste centro, Valéria afirma que “o certo” seria que tivesse sido preparada desde os sete anos, mas nada lhe foi dito por sugestão da baiana, que a conhecia o suficiente para saber que se este encargo lhe fosse anunciado tão previamente, ela poderia se rebelar contra seu destino e desistir.  Assim, Maria Baiana do Morro foi-lhe “comendo pelas beiradas”, diz, pois era sábia para perceber que a médium não aceitava nada que lhe fosse forçado.

Nunca houve esse negócio “você vai se formar pra substituir a sua mãe”, pelo contrário, eu sempre fui a mais revoltada das filhas, queria liberdade, ninguém conseguia me segurar.

13Um ano depois de voltar a morar com sua mãe em Peruíbe, Valéria escutou de Maria Baiana do Morro que “todos poderiam ter liberdade de entrar e sair”, menos ela. A médium, no entanto, compreendeu desta fala que a sua mãe precisava de sua ajuda para reger os rituais no terreiro porque estava doente: “Se eu sentir que estou acuada, eu não faço, não me cobre nada, então fiquei revoltada na época, mas nunca imaginei que isso seria pela falta da minha mãe”. Como D. Anélia tinha que se ausentar do centro pelos constantes problemas de saúde, Valéria acatou o pedido da baiana, e passou a ajudar na chefia dos rituais, mas ainda não havia compreendido que naquela fala havia a menção de que ela ocuparia o lugar de sua mãe efetivamente.

14Na época, havia um rapaz que dividia as responsabilidades pelo terreiro com D. Anélia, e, segundo ela, possuía a mesma “linhagem” de sua mãe, ou seja, os mesmos orixás, de maneira que ela própria imaginava que ele seria o substituto da casa: “na minha cabeça, nunca me passou que se a minha mãe faltar, eu que vou substituir, não, quem ia substituir era ele”. Eram setenta filhos-de-santo que se dividiam entre os rituais de terça e sexta-feira: “ele tomava conta dos trabalhos com 35 filhos e eu de sexta com 35 filhos, porque minha mãe não conseguia mais trabalhar”.

15Em 2010, D. Anélia falece e, no ano seguinte, este rapaz sai do centro para montar seu próprio terreiro tal como lhe havia sido determinado pela Maria Baiana do Morro. O terreiro, assim, entra em crise e perde quase todos os filhos-de-santo da casa.

Pesquisadora: - Antes de falecer, sua mãe não falou nada sobre isso?

Valéria: - Não. Não houve uma determinação: “A Valéria vai ficar”. Houve uma determinação de que esse rapaz não ia ficar, ele ia abrir a casa dele em outro lugar. Eu entendo que não tinha como deixar ele aqui e ignorar o meu sangue. O sangue é o que continua a casa. Então, foi uma coisa meio de “deixa com a Valéria que ela vai”, mas tomar a consciência da responsabilidade demorou, porque foi uma perda muito grande. Tinha as entidades da minha mãe que faltaram também, todos nós ficamos órfãos da entidade da minha mãe, porque era pra fazer uma coisa,  ela determinava, a Maria Baiana do Morro (chora)...ela deixou a todos nós órfãos.

16 Junto a seu irmão e poucos que restaram, Valéria esforçou-se por levar o terreiro adiante, mas estavam todos “sem eira nem beira, sem a baiana e sem minha mãe, totalmente desestruturado. (...) De 70, o terreiro ficou com dez filhos, somando comigo e com meu irmão, então o terreiro começou de novo, do nada”.

17 Conta, ainda, que a cada gira que abria, “chorava, desmoronava”, e os presentes choravam junto com ela, “arrastavam-se”. Muitos diziam não conseguir mais ir ao centro porque tudo ali os lembrava de D. Anélia e não suportavam a saudade. Além disso, perderam também a baiana, que “era como se fosse mãe de todos”, e, de fato, até nos menores detalhes a baiana intervinha como uma mãe: “não era só na gira, tinha uma dor de barriga, chama a baiana, acontecia outra coisa, chama a baiana, então a gente se viu desprovido de tudo”. E complementa: “Ela era uma mãezona, ela era a mãe que, às vezes, a minha mãe não conseguia ser”. Até mesmo quando Valéria começou a namorar na adolescência, a baiana “passou o recado” para a sua mãe de que “as meninas precisavam ir ao médico pra tomar bolinha”.

18Foi também a baiana quem preparou os filhos da casa para a morte de D. Anélia, ao dizer: “vocês se preparem, rezem pela Anélia porque eu não posso fazer mais nada pelo físico dela”. Para Valéria, particularmente, falou: “Prepare-se, bote seu joelho em terra pra Oxóssi12, peça pra que você tenha todo discernimento porque você vai ficar no lugar de sua mãe” (...) Mas o choque de assumir os trabalhos eu só tive depois, de dois anos pra cá”.

19  O ano seguinte à morte de D. Anélia foi, como diz, uma “grande provação”, pois não se sentia preparada para ser mãe-de-santo. Gostaria de ter sua vida de trabalho e divertimento como uma pessoa “comum”, e temia as responsabilidades deste encargo.

20Durante um ano, rogou para que Maria Baiana do Morro aparecesse incorporada em alguém para lhe ajudar e indicar o que fazer diante das dificuldades que encontrava.

21O terreiro perdera também muitos médiuns experientes que estavam com sua mãe desde a fundação do centro, sendo, inclusive, mais antigos no terreiro do que a própria Valéria. Não foi explicitado, mas tudo indica que muitos filhos-de-santo não se filiaram à substituição. Alguns deles, como diz Valéria, eram como se fossem os “pilares” do terreiro, ao que concluo: se os pilares saem, a casa cai. Ela acrescenta que quando um pai ou mãe-de-santo morre, o “certo” é fechar o terreiro por um ano. Não o fez, e acredita que se tivesse feito, o centro teria acabado. Este período, no entanto, foi de pleno luto: “(...) foi muito difícil, você entrava aqui, e tudo era a minha mãe”. Neste ano, não apenas Valéria, mas todos na casa ficaram perdidos em relação ao rumo do terreiro: “durante um ano, a gente bateu cabeça porque não queria que a casa fechasse, mas os filhos debandaram cada um pra um lado”.

22 Ao findar do ano seguinte, percebo ter havido uma elaboração do luto e início de assimilação da herança com o surgimento de uma nova entidade espiritual que “tomou as rédeas” da casa e reorganizou a “boiada” dispersa: João Boiadeiro do Mato Grosso do Sul.

23Trata-se de um espírito de boiadeiro13 que havia incorporado em D. Anélia. Neste dia, Valéria foi chamada e João Boiadeiro se apresentou dizendo que um dia viria para trabalhar com ela. Na ocasião, a médium não imaginava que ele se tornaria uma de suas principais entidades espirituais. Este espírito, assim, passou a responder às necessidades que antes eram supridas pela Maria Baiana do Morro, pois foi ele quem passou a dizer o que fazer e como dar seguimento aos trabalhos da casa, como veremos.

24É fato que o ano seguinte à morte de D. Anélia contou com uma necessária elaboração de luto para que Valéria pudesse seguir em frente. No entanto, penso que a estagnação e o desmoronamento em pranto que surgia a cada abertura de gira, deve-se, além da perda propriamente dita de sua mãe e de suas entidades espirituais, também ao não-dito desta transmissão, o que repercutiu tanto na aceitação da herança do cargo para a própria como na dificuldade da assunção de seu papel de mãe-de-santo para a comunidade. Não houve uma preparação prévia nem um anúncio coletivo de que ela seria a herdeira. Durante este primeiro ano, o luto se enlaçou à dúvida. A mãe-de-santo não sabia se suportaria o legado e nem mesmo se este era o seu desejo; os filhos-de-santo, por sua vez, filiaram-se ao ‘clima’ de incerteza.

Sobre a transmissão: Valéria se faz herdeira

25O aparato teórico atinente à transmissão psíquica geracional explora os conteúdos inconscientes que são transmitidos de uma geração a outra, contribuindo ao oferecer uma apreensão complexa acerca da herança psíquica familiar. Defende-se que a transmissão geracional pode ser tanto alienante como estruturante para o sujeito, e para que se possa assumir o transmitido como próprio, é preciso um trabalhoso processo de elaboração psíquica.

26É comum atrelar esta temática à área de terapia familiar ou psicanálise vincular, mas deparamo-nos com a questão da pertença nos estudos psicanalíticos de forma geral.  O temaperpassa toda a obra freudiana, sendo presente, por exemplo, na ideia de como aquilo que foi suprimido inconscientemente pode surgir em outro lugar, seja no próprio sujeito, seja no outro familiar, por meio de uma continuidade da vida psíquica. Em Sobre o Narcisismo (1914), Freud explora como os filhos são a possibilidade de realização dos pais. Se de um lado é importante que os pais invistam seu afeto no bebê acreditando que eles sejam a possibilidade de realização de seus desejos, por outro lado, cabe ao sujeito adulto se posicionar frente ao lugar que lhe foi designado. Inglez-Mazzafera (2006) e Kaës (1998) referem-se a O ego e o id (1923), texto no qual Freud aborda como a função do eu seria também a de se pensar diante da transmissão e da herança, apresentando que no id ‘encontraríamos’ restos de “antigos eus” de várias gerações; ideias que dialogam, ainda, com os textos Totem e tabu (1912-1913) e Moisés e o Monoteísmo (1939). Também podemos citar Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise (1932), quando é explorada a ideia do superego como depositário do passado de gerações anteriores que persiste em qualquer sujeito.

27Na acepção lacaniana, a questão se torna ainda mais clara, pois não há como pensar o eu senão pelo Outro, é o Outro quem nos oferece a imagem de quem somos (Lacan, 1949/1998). Calcando-se nas primeiras obras freudianas, Lacan nos apresenta como as formações do inconsciente são ‘linguajeiras’ (Lacan, 1953/1998), ampliando e aprofundando a teoria freudiana de forma consistente ao realizar uma releitura a partir das contribuições tanto da tradição filosófica alemã, quanto da linguística de Saussure e do estruturalismo de Lévi-Strauss. Para ele, o sujeito é determinado pelo significante, o que implica em dizer de um sujeito para além do “eu”: o “sujeito do inconsciente”, que se concebe por uma cadeia de significantes. Ou seja, não falamos de uma palavra em si, mas da fala na medida em que é endereçada a um outro, o que implica sempre em pensar uma relação, visto que para que a linguagem exista, é necessário um falante e um ouvinte.

É justamente essa assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve de fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de psicanálise (LACAN [1953] 1998, p. 258).

28Antes mesmo de nascer, há demandas, desejos e destinos que esperam o sujeito e com ele se confrontam. Nada disso existe a priori, no entanto, é justamente o encontro que inaugura o passado, o que implica também em dizer que o inconsciente se dá num tempo ‘a posteriori’, ou seja, o sujeito depara-se com o Outro, mas a sua significação se dá ao longo de sua constituição. Podemos afirmar, ainda, que o organismo que vem a nascer é uma prévia do sujeito que se tornará mítica quando este se constituir, ou seja, o sujeito carrega esta experiência como marca, herança que será retomada e ressignificada (Petri, 2008).

29Françoise Dolto contribui ao acrescentar que apesar de no início o bebê não ter desejo próprio, é importante pensar que a criança é fonte autônoma de desejo desde sua concepção. Para ela, o próprio nascimento já é a encarnação no corpo do desejo de se assumir um sujeito desejante (Dolto, 1996; Dolto &Nasio, 2008). Enfatiza também a importância de pensar a criança na tríade que a concebeu para refletir a respeito do que denomina por ‘desejo transgeracional’ (muitas vezes para além do desejo parental) que interpela o sujeito e nele encarna.

30Tanto Dolto quanto Lacan, no entanto, concordam na perspectiva de que no início ainda não há um sujeito constituído. Aquele organismo que nasce está colado àquele que lhe proporciona a sua sobrevivência. A prematuridade do ser humano ao nascer faz com que experimente uma dependência absoluta daquele que lhe presta cuidado. Podemos dizer que a criança é nomeada ao longo da sua constituição de sujeito, e, assim, o seu corpo é progressivamente sobrescrito por significantes.

31Neste sentido, pertencer a uma família é ser suporte de um discurso que o antecede e localiza o sujeito no mundo. O infante é depositário e herdeiro dos sonhos não realizados de seus ancestrais, mas é também quem “dará lugar e sentido a estas predisposições que o precedem, que o violentam, mas que são as condições de sua concepção propriamente psíquica” (Kaës, 1998, p. 7).

32A transmissão pode ser compreendida tanto na identificação com os próprios pais ou familiares como por meio da pré-história do sujeito, ou seja, por meio de traços mnêmicos de gerações anteriores. É imprescindível que a escuta analítica esteja atenta ao que se transmite tanto em sua forma “negativa” - ou seja, naquilo que não foi elaborado e surge na forma de sintomas, recalcamentos, objetos perdidos e enlutados, não-sabidos e segredos que reincidem em gerações posteriores -, quanto em sua forma “positiva”, naquilo que ampara e assegura o sujeito de sua continuidade, conferindo-lhe a possibilidade de se identificar com o outro e conservando seus vínculos afetivos (Correa, 2003). Mas como nos constituir por meio do Outro sem sermos tomados pela sua história?

33É neste sentido que a maneira como nos manejamos herdeiros exige um intenso trabalho psíquico. Herdar implica em tornar próprio, historicizar, simbolizar, inscrever-se para que não nos alienemos na história familiar, no desejo do Outro (Inglez-Mazzarela, 2006). É possível notar que por mais que Valéria estivesse assiduamente presente no terreiro e fosse peça-chave de seu funcionamento há anos, a herança lhe toma desprevenida. Foi necessário que reestruturasse não apenas sua vida “concreta”, mas seu desejo, seu devir e até mesmo a maneira como se pensa “mulher”, um percurso que ocorreu em articulação direta com as suas entidades espirituais.

34Noto que como a “passagem do bastão” não foi premeditada e anunciada, o processo de assimilação do cargo foi dificultado, pois não apenas ela, mas também a comunidade como um todo teria que aceitar esta transmissão não explicitada. Cambaleante, frágil e desamparada, duvidou de sua capacidade de bancar o encargo e durante este ano deixou que os presentes tomassem a frente no terreiro, “quem queria fazer, fazia”, mas todos se encontravam perdidos.

35Como Debieux Rosa (2001, p. 128) afirma, o não-dito aliena o sujeito, que se perde do transmitido e “corre o risco de, defrontado com uma lacuna, ficar aprisionado em uma experiência para a qual não dispõe de significantes que lhe permitam responder”.

36Quando surge João Boiadeiro, uma figura masculina que traduz imageticamente o guia da boiada dispersa, Valéria finalmente começa a se ancorar naquilo que será seu. Não era possível dissimular, o papel de mãe-de-santo deveria ser plenamente vivido, tornado próprio, encarnado.

37A assunção do boiadeiro representou também a sua legitimidade no cargo, pois surgira uma entidade espiritual para lhe amparar no exercício. João Boiadeiro, assim, torna-se a sua principal entidade espiritual. Segundo ela, a comunidade precisava desta figura para se ancorar e assegurar. Aos poucos, os presentes passaram a encontrar na figura do boiadeiro o referencial espiritual que buscavam em Maria Baiana do Morro.

38Uma das primeiras determinações do boiadeiro foi a troca das cores das bandeirolas da casa dispostas no teto do terreiro. Até então, ainda estavam presentes o amarelo, o verde e o branco, representativos dos orixás de D. Anélia: Oxum, Oxóssi e Oxalá. Valéria refere que pensou em trocar as bandeiras, mas não tinha coragem de substituí-las. O boiadeiro, no entanto, pediu para que fossem dispostas bandeirolas de todas as cores dos orixás para que todos pudessem ser representados (Imagem 1). Acredito que esta disposição permite com que não apenas Valéria possa sentir que aquele espaço se renovou, mas, metaforicamente, também foi dito que todos pertenciam àquele lugar.

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Imagem1: Terreiro Caboclo Oxóssi e Maria Baiana do Morro

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Imagem 2:  Altar (congá) do terreiro

39O pedido expressa, ainda, uma sutileza bastante expressiva: não são as cores dos orixás de Valéria. As novas cores enunciam uma possibilidade de assumir sua dívida sem ultrapassar a mãe, sem pretender tomar-lhe o lugar. O fardo desta substituição, talvez, teria sido demasiado, e, mais ainda, quando todos os orixás são representados, a responsabilidade pelo centro, de certa forma, é compartilhada neste significante novo em que todos podem se assinalar.

João boiadeiro ensinou que todo mundo é igual, não tem mais cúpula, todos podem participar, não tem mais uma pessoa especial que faz isso ou aquilo, todos têm que aprender e todo mundo é do mesmo tamanho, e eu aprendi que isso é a umbanda.

40Ao mesmo tempo, como já dito, trata-se de uma figura do mundo espiritual que vem especialmente para lhe oferecer diretrizes para o centro; ou seja, ao lhe auxiliar tal como Maria Baiana do Morro fazia com sua mãe, João Boiadeiro também a institui no papel de mãe-de-santo e lhe acompanha nesta assunção que progressivamente torna-se própria e reconhecida pela comunidade.

Existe uma entidade que deve ser respeitada e que é a minha entidade. Isso me dá segurança pra dizer que e é ele que tem a visão espiritual, ele é quem sabe o que fazer, a entidade tem uma visão além que a gente não tem, eu sou só um instrumento.

41 Foi também depois da incorporação do boiadeiro que Valéria enterrou na “mina” a sua obrigação de santo e retirou a de sua mãe. Na fotografia acima (Imagem 2), vemos um cesto com milho, e, abaixo dele, há um espaço em que foram enterrados os objetos ritualísticos da feitura de santo de Valéria. Em alguns momentos de nossas entrevistas, quando a mãe-de-santo referia assumir a responsabilidade pelo centro, dizia “agora é o meu que está na mina”. Ao enterrar os objetos representativos de seus orixás, a mãe-de-santo ancora-se e instala-se, declarando em discurso e representando concretamente o aceite da responsabilidade.  

42 Dois anos após a morte de D. Anélia, Valéria já se apresenta de um lugar próprio e atrela sua segurança ao boiadeiro, que, para ela, tanto lhe capacita a ser mãe-de-santo, ensinando-lhe como fazer, quanto se sente respeitada por ele “seguir seu ritmo” de maneira que não se sente presa como temia:

Eu acho bacana a maneira que ele trabalha, inclusive pra mim, como ensinamento, ele faz com que todo mundo esteja aqui porque quer estar, é a coisa da liberdade, né, é a coisa de boiadeiro. Você tem liberdade pra seguir os seus caminhos. Se você quiser ficar aqui, fique de coração. E tudo que você quiser fazer, faça. Ele não calça você, ele deixa você correr com as suas próprias pernas. Tudo você pode contar com ele, mas na falta dele, ele te capacita pra que você entenda que você pode mais. Isso é um trabalho bonito que ele faz, e daí tá toda a revolução, hoje eu tenho 35 filhos na casa, dou assistência para 30, 40 pessoas em dia de gira, os trabalhos não pararam.

43 Tal como um boiadeiro, sua entidade laçou-a para que se mantivesse em pé e fosse capaz de liderar a “boiada” autonomamente. Em um determinado momento da entrevista, refere, inclusive, que não sabe até quando esta entidade trabalhará com ela, mas sente que ele a capacita de forma que ela não se sinta dependente dele; ou seja, o boiadeiro apresenta-se peça-chave justamente deste processo de transmissão, o que poderá findar. Ao lhe legitimar na chefia, esta entidade masculina oferece também uma voz de comando que lhe faltava:

44Aquilo que eu não tive forças pra abraçar e tocar sozinha, ele me deu um incentivo pra continuar. (...) Tudo o que a baiana fazia, ele tem feito, a maneira que tem que fazer o trabalho, confirmação de nome de entidade, dia de trabalho, tudo ele tem feito, qualquer determinação. (...) Então mudou toda a minha vida espiritual, porque até então eu não tinha tido uma força de comando.  

45O esquema corporal do boiadeiro durante a incorporação expressa justamente o que “trabalhou” em Valéria: o comando, a determinação e o agrupamento da boiada. Figura eminentemente masculina, os boiadeiros quando incorporam simulam uma cavalgada, pulam com pés alternados ao mesmo tempo em que realizam movimentos circulares com as mãos de punhos fechados. É como se rodassem um laço que busca atingir um alvo, além disso, é aquele que resgata com seu laço o boi disperso e comanda o rebanho a um destino. Figura paterna que surgiu quando faltou-lhe a materna, oferece-lhe direção ao mesmo tempo em que a ampara.

Referências populares masculinas (paternas) fortes, parecem retratar a transição entre o altivo ‘índio brabo’ do interior e a sua descendência ‘batizada’ e domesticada, habitante dos bairros populares de cidades litorâneas, num cenário ‘seco’ e ‘duro’ (Bairrão, 2013, p. 100).

46O “laço”, significante da figura do boiadeiro, é justamente aquilo que o terreiro/ Valéria necessitava. Os fiéis são enlaçados e novos filhos são conquistados.

47Miriam Rabelo (2008) apresenta-nos como na possessão o corpo é receptáculo dos laços que se formam com o sagrado tanto em memória quanto em imagem e influem na maneira como os sujeitos se posicionam diante dos outros e das coisas. A possessão é pensada para discutir a teoria da prática, o que não costuma ser comum, visto que a passividade e a atividade são discutíveis neste caso. No entanto, a autora afirma que no caso da possessão, é interessante pensar que o poder de agência é compartilhado entre o mundo dos espíritos e o humano. Ao que nos interessa, é o boiadeiro quem diz, mas é em Valéria que ele atua. Quando o boiadeiro ordena, é também ela quem toma as rédeas para si e para o outro. Ao incorporar o boiadeiro, Valéria estabelece laço igualmente consigo e com o outro, de modo a sentir-se capaz de guiar e comandar o seu rebanho ao mesmo tempo em que se reconhece em sua herança.

48É interessante notar que ao final de nossa primeira entrevista, a mãe-de-santo revelou que pensava em resgatar o ritual de umbanda tal como era praticado por seu bisavô em Iguape-SP, pois começava a sentir necessidade de modificar alguns aspectos da maneira como o ritual se organizou na época de sua mãe. Segundo ela, o boiadeiro também pediu que alguns médiuns plantassem ervas medicinais para serem utilizadas no centro.

49Assim, expressa como na medida em que começa a se sentir legítima em seu lugar, posiciona-se de modo a buscar um jeito próprio de ser mãe-de-santo. Não nega o transmitido por sua mãe, mas busca sua ancestralidade ao passo que se torna singular.

50O desejo de retorno ao avô alinha-se com o de firmar-se na umbanda, pois, apesar de respeitar as mudanças que a baiana realizou no terreiro segundo preceitos do candomblé, declara identificar-se de fato com a umbanda, o que também diz sobre como passa a tornar própria a sua herança:

Naquilo que eu amo, eu estou longe de ser candomblé. Eu amo a doutrina do candomblé, mas no ponto em que eu estou, eu vi que teria que estudar muito para colocar aqui o fundamento do candomblé. O que eu sei é essa coisa humana, essa coisa de conversar com os filhos, (...) eu não me vejo sendo candomblecista, eu amo essa coisa que a baiana trouxe, mas não é uma coisa que eu me vejo fazendo, ou é umbanda ou é candomblé.

51Gerez-Ambertín (2009, p. 226) afirma que:

Recusar o reconhecimento ao pai e aos seus dons, por meio da ingratidão, implica rejeitar a dívida simbólica e, paradoxalmente, ficar à sua mercê qual vassalo submetido à “pressão constante”, oferecendo o corpo em sacrifício.

52Há sempre um risco na transmissão, na acolhida de sua filiação e genealogia. No entanto, é a admiração sem idealização pela sua mãe, que permite com que seja capaz de acolher sua herança e buscar seu lugar neste dom.

53As entidades espirituais, assim, se articulam tanto na história de vida de Valéria quanto na composição do terreiro, oferecendo novos enlaces para um novo tecido que se constitui. É uma história de duas mulheres, Anélia e Valéria, permeada, como veremos, por outras tantas mulheres espirituais, e um boiadeiro que surge ao mesmo tempo em que se recorre ao bisavô, ancestral representativo da tradição que parece faltar e lhe atribui tanto uma sustentação necessária quanto a possibilidade de se reconhecer no legado herdado. É notável, ainda, um processo gradual de construção de si, com destaque para a elaboração da sua feminilidade, que, a depender do momento, “migra” entre o ser “mãe” e o ser “mulher”, com episódios em que estas posições entram em conflito.

Ser mulher e mãe (de santo)

54Para Valéria, uma das dificuldades de aceitação da herança devia-se ao temor de perder sua “vida própria”. Trata-se de uma mulher de 36 anos que cuida sozinha de sua filha adolescente, trabalha num escritório de contabilidade, gosta de encontrar os amigos e se divertir; o que pode ser, muitas vezes, incompatível com o exercício de uma chefe de terreiro. Como o centro não lhe oferece qualquer rendimento financeiro, a mãe-de-santo trabalha durante o dia no escritório e à noite gere os rituais realizados de duas a três vezes por semana. Durante os finais-de-semana também não há descanso, pois ainda presta atendimento individual às pessoas da comunidade, realizando trabalhos de “limpeza espiritual” em suas casas, bem como participando de rituais organizados fora do espaço do terreiro.              

55É notável perceber que Valéria repetidamente verbaliza a palavra “liberdade”, a qual surge atrelada à maneira como deseja exercer o seu papel de mãe-de-santo. Assim que sua mãe falece, a crise se instala não apenas pelo luto vivenciado, mas também pelo temor em relação ao seu devir, que, intimamente, associava-se ao seu devir como mulher que parecia incompatível com o legado herdado. A vida de dor e sofrimento de sua mãe certamente pesava-lhe na aceitação da herança, era difícil perceber-se nela para se pensar tanto mãe de santo quanto mulher.

56Valéria percorre, assim, uma trajetória de construção de si que não se deveu exclusivamente à presença do boiadeiro. Como ela mesma diz, percebe ter sido “preparada às cegas” para assumir este papel sem que o soubesse previamente. Esta percepção parece surgir ao longo de nossas entrevistas, já que o disperso começava a se alojar num discurso que se desenhava progressivamente encadeado.

57Em nossa primeira entrevista, ocorrida cerca de dois anos após a morte de D. Anélia, Valéria recebe-me desculpando-se por não poder me abraçar. Em minha memória afetiva, no entanto, tenho a imagem de um afetuoso abraço, mas ao reler meu relato de campo, certifico-me que, de fato, ela não pôde tocar em mim, pois havia feito uma obrigação para Iemanjá. Estava em meio aos 21 dias de “camarinha” (processo ritual tradicional no candomblé). Peço a ela que me explique do que se trata, eis que mais uma narrativa instigante se desenlaça.

58A mãe-de-santo afirma que seus orixás, desde o início, eram Oxóssi e Iemanjá. Quando se mudou para a casa de sua mãe com sua filha, por volta dos 21 anos, Valéria teve uma conversa referida anteriormente com Maria Baiana do Morro, incorporada em sua mãe. Nesta ocasião, a baiana disse a ela que seu lugar ali era diferenciado em relação aos outros e acrescentou que apesar de os seus orixás serem Oxóssi e Iemanjá, o orixá feminino que agora “respondia” por ela era Iansã.

Quando a baiana teve aquela conversa comigo de que todo mundo podia sair, menos eu, foi quando ela falou que eu tinha virado Iansã, era Oxóssi era de frente ainda, mas não era mais Iemanjá que respondia, de uma certa forma, me disse que isso era mudança na minha postura com relação a tudo, era para eu parar de brincar com as coisas e pra eu conseguir seguir metas.

59Valéria afirma que antes disso ela era muito “chorona, bobona” e “melosa”, o que, para ela, era uma “sensibilidade trazida pela manifestação da força do orixá, que traz docilidade e espírito maternal”. A mãe-de-santo afirma que esta mudança influenciou a sua capacidade de liderar, concluindo que não teria conseguido suportar a dificuldade pela qual passara após a morte de sua mãe se não lhe houvesse sido trabalhado Iansã.

(...) tenho certeza que eu não ia aguentar as pontas se eu fosse de Iemanjá, eu ia ser muito flexível, qualquer um ia montar em cima de mim e eu não ia conseguir trabalhar (como mãe-de-santo).

60Desde essa época, diz, ficou regida por Iansã, mas realizou a sua “obrigação” apenas aos 24 anos, quando fez a sua primeira “camarinha”. Todo o processo foi gerido por Maria Baiana do Morro, que, na interpretação de Valéria, foi perspicaz ao perceber que se ela fosse de Iemanjá não suportaria arcar com seu legado. Era preciso, primeiramente, um processo de transformação.

Ser Iemanjá diante de todas as batalhas que eu tinha pela frente, eu não ia aguentar, eu era muito doce, eu era muito passional, quando era adolescente eu sofria muito pelos outros, eu me quebrava muito fácil, e diante da missão de carregar uma casa, você não pode se sentir muito vulnerável, você não pode se sentir diminuída, você não pode se sentir menos. Você tem que ter autoridade.

61Com a “influência” de Iansã, percebe que se tornou uma mulher forte e destemida. Um ano após a morte de D. Anélia chega o período em que Valéria deveria refazer a obrigação, ou seja, passados sete anos, deveria “confirmar o santo”. Dessa vez, no entanto, não contava com a baiana para lhe dizer o que e como deveria fazer.

62Uma das médiuns da casa recebe o “recado” intuitivo de Maria Baiana do Morro para que ela buscasse um pai-de-santo que jogasse búzios, pois sua mãe e suas entidades estariam “presentes” e confirmariam as orientações. Nesta ocasião, tanto foi esclarecido à Valéria que João Boiadeiro viera para auxiliá-la tal como a baiana com sua mãe, quanto que desta vez ela deveria fazer obrigação à Iemanjá.

63Assim, nesta primeira entrevista senti Valéria à flor da pele, suas mãos tremiam e a voz embargava frequentemente. A perda de sua mãe (há cerca de um ano e dois meses) ainda era latente, mas já enunciava o desejo de dar continuidade ao trabalho no terreiro. O boiadeiro surgira há pouco tempo, e Valéria acabara de jogar búzios. Encontrava-se em pleno período de “obrigação”, e eu sentia como se fosse um grande esforço percorrer sua trajetória marcada pela dor e pelo temor do último ano. Apesar da emoção pulsante, ela se mostrou cada vez mais à vontade ao longo da conversa, pois percebeu que mais do que inquerir “cientificamente” sobre a umbanda, eu me interessava por ela, era à sua narrativa que me prestava ouvir. Valéria, no entanto, ainda aguardava minhas perguntas e, a meu ver, temia se expor. Uma leve insegurança se denotava em palavras acompanhadas de um querer chorar constante. Era como se não apenas o fato de ser uma mãe-de-santo “recém-nascida” lhe deixasse como tal naquele momento, mas a própria Iemanjá também estava à flor da pele, e Valéria fazia força para que suas águas não inundassem nossa conversa.  

64Antes de finalizar a primeira entrevista, dei início a uma prática que nunca realizara. Pedi que ela dissesse a primeira palavra que viesse à mente quando eu lhe falasse o nome da entidade espiritual. Tratou-se de uma estratégia despretensiosa, mas foi a saída que encontrei para que eu mesma pudesse me ancorar naquela entrevista que, a princípio, se apresentava sem destino, não percebendo que o mais precioso do seu discurso era justamente aquilo que se apresentava tão pulsante: a transmissão. Ora, as entidades espirituais femininas que me interessavam surgiam justamente entrelaçadas a esta história. De qualquer maneira, o processo foi interessante, comecei a sugerir as palavras “caboclo, cabocla, preto-velho, preta-velha...etc”, e depois passei para os orixás. Ao se referir à Iansã, ela não titubeou: “Iansã é coragem, é, ela não tem medo, destemida, destemida, a força de Iansã é destemida”. Em relação à Iemanjá, respondeu “maternal, maternal”, nomeando aquilo que começava a se organizar em sua fala: as diferentes formas/forças do “ser mulher” a que recorre.

65Suas palavras me levam a interrogar mais a respeito da “camarinha” e relata que mesmo antes de finalizar os 21 dias, já percebia diferença em si mesma, articulando a feitura de Iemanjá com a sua assunção como mãe-de-santo e o próprio compromisso com a comunidade:

Já senti uma diferença tremenda de antes e depois, no jeito de falar, na maneira de pensar. Quando você tem esse momento de recolhimento, é como se você estivesse reafirmando o seu compromisso com as pessoas, é como se você dissesse “eu tô dentro”.

66Na segunda entrevista, quando eu mesma havia organizado melhor o conteúdo narrado a ponto de perceber que o processo de transmissão fora a tônica dominante de nosso encontro, Valéria já me oferece uma narrativa organizada.

(...) ela (Iemanjá) foi colocada em terceiro lugar só por uma necessidade espiritual, mas isso fica muito claro diante do meu quadro de vida, todo o andamento da minha vida, eu não ia ter segurado as pontas se eu fosse de Iemanjá, eu ia ser muito branda, porque eu ia ser muito flexível, diante da perda eu não ia me sentir estruturada, eu não ia conseguir me impor. E quem mexe muito na gente é o gênio do Orixá. (...) Por exemplo, alguém me sacaneou, se fosse em outros tempos, eu me sentiria tentada a pagar na mesma moeda, mas eu penso “não vale a pena”, e ela trabalha em mim dizendo que além de não valer a pena, eu quebro a perna da pessoa porque eu  convido a pessoa pra sentar perto de mim e conversar comigo. E isso é muito claro, me conhecer antes e me conhecer depois, é totalmente diferente.

67Valéria nos apresenta que Iansã lhe ofereceu coragem para aceitar o desafio do cargo e, a partir de então, ser capaz de assumir-se Iemanjá, maternal e mãe-de-santo do terreiro. A mãe-de-santo nomeou este processo como “reforma íntima”:

Teve uma reforma íntima, uma coisa de “não aja assim, faça assim, você vai lá, obedece e você vê que é muito melhor...e isso é em relação a tudo. Antigamente, você nem me via na gira, eu entrava, fazia o que tinha que fazer e pronto, porque o outro rapaz fazia tudo. Agora não, eu não saio daqui enquanto tudo não estiver resolvido.

68Ao narrá-lo, atenta-se ao conteúdo antes disperso:

Olha, se você for pensar, quando eu fiz Iemanjá, eu realmente consegui abraçar o terreiro, eu consegui ver a parte humana do terreiro, eu consegui abraçar fisicamente e espiritualmente as pessoas, eu consegui abraçar as necessidades das pessoas. (...) eu tenho que fazer bem como minha mãe abraçava as coisas, não pra ser igual a ela, porque igual minha mãe nunca mais, “never mor”, mas abraçar o humano da missão, às vezes a pessoa precisa só de alguém que a escute, que a abrace e fale você não tá sozinho.

69Apresenta-nos, assim, como consegue se identificar com o “mãe” de sua própria mãe, assumindo seu legado, mas reconhecendo algo que lhe é próprio. Para ela, assentar sua Iemanjá fez com que se sentisse capaz de acolher seus filhos de santo, posicionando-se em um novo lugar: mãe (de santo).

70Uma mãe só nasce quando há um filho para ser cuidado, e não por acaso sua “obrigação” foi realizada naquele momento. Iemanjá conferiu imagem e nome a esta nova configuração de ser que se estruturava. Era o que faltava para que se ordenasse a cadeia significante que a levou a suportar este lugar. Neste momento, já havia um filho que necessitava de cuidados, o terreiro começara a se reerguer e o “rebanho” vinha se organizando.

As pessoas diziam que antes eu era um purgante, eu entrava na gira, fazia meu trabalho e ia embora. Hoje eu venho aqui, abraço as pessoas e sinto falta, quando você ama as pessoas, você é alimentado, você não perde, você ganha (chora). A própria manifestação de Iemanjá hoje é aquilo que eu devia ter trabalhado desde lá de trás, (...) Iemanjá é mãe de todos os orixás, é aquela que dá a vida, é o princípio, é o nascer.

71Sua dedicação chama a atenção dos filhos-de-santo, de modo que Valéria acha graça quando um deles diz: “Mas como que minha “mamys” vai namorar desse jeito? Se nem de final de semana ela tem descanso?”

Valéria: Eu falei, Gi, eu não vou me preocupar com namoro agora, porque agora eu tô preocupada que a d. Maria (frequentadora do terreiro) tem que limpar a casa dela.

Pesquisadora: E como tem sido isso, sua vida fora e sua vida no terreiro?

Valéria: Na verdade, assim, a minha vida é a vida dentro do terreiro, porque tudo que você faz aqui dentro, a sua postura, as orações, a preocupação com o semelhante move a gente lá fora. Eu não recebo dinheiro para ficar no terreiro, eu tenho que trabalhar fora, mas eu tenho que conciliar com falar com as pessoas, fazer defumação, limpar a casa das pessoas, mas eu não perco a minha liberdade de pegar minha moto e sair com uma amiga pra praia, de ler um livro.

72Valéria apresenta que conseguiu, efetivamente, assumir o seu lugar e acrescenta que acredita que sua mãe esteja orgulhosa do que tem feito, mas complementa:

Valéria: Mas tem um pequeno “porém”, ninguém consegue me ver como mulher, sabe? Já tentei sair com pessoas de dentro da casa porque a pessoa chega e diz com você eu tenho que ter respeito, então, é assim, mas enquanto o resto estiver indo bem, tá bom, né? (risos).

Pesquisadora: Talvez isso seja um período, né? Quando você falou, me deu a sensação de quando você se torna mãe, e, no início, como mulher, você é mãe e está voltada só ...(sou interrompida).

Valéria: Só pros filhos, só pros filhos, eu não me sinto sobrecarregada de me doar pros filhos, eu não me sinto exigida ainda, sufocada, mas se isso acontecer também, até pra gritar uma liberdade espiritual, eu estou sendo preparada. Pode ser que chegue um final-de-semana que eu sinta a necessidade de dizer “peraí, esse final-de-semana, não, esse final-de-semana eu vou ficar preparada com as perninhas pra cima”. O que mais tá me preenchendo agora é ser necessária, é o filho precisar de mim e eu poder responder, é eu estar lá.

73A mãe-de-santo expressa um incômodo e certo temor com relação ao exercício de sua sexualidade, mas no momento em que ofereço uma restituição subjetiva de sua situação, sente-se apaziguada.

74Seria precário estabelecer uma relação direta entre uma gravidez e o nascimento de um bebê com o processo de assimilação da herança de um terreiro e o devir mãe-de-santo, mas existe alguma coerência que se efetivou quando lhe restituí minha compreensão de sua situação. A gravidez suscita na mulher um “balanço” identitário, de maneira que se interrogue não apenas sobre a mãe que será, mas a mulher que é, e coloca em jogo o maternal e o erótico (Parat, 2006). Como disse, em nossa primeira entrevista, percebi que Valéria estava ‘à flor da pele’ tal como uma mãe que acabara de ter um filho, apresentava-se assustada diante de seu destino, como se algo ainda estivesse desalojado. Já em nossa segunda entrevista, Valéria apresenta-se “plena”, o filho já era seu, e sabia / era capaz de responder aos seus apelos. Era capaz de oferecer seus braços e seu afeto à comunidade. Assim, dedica-se exclusivamente aos filhos, trabalhando no escritório durante o dia, e no terreiro durante quase todos os dias da semana. No entanto, não se sente sobrecarregada. Surpreende-se com isso ao olhar para sua história de mulher independente, mas se diz feliz com a escolha.

75Assim como a figura da própria mãe é convocada pela menina no seu devir-mulher, e, posteriormente quando engravida para se pensar mãe, Valéria assinala-se em D. Anélia para se compreender mãe-de-santo, mas não apenas, já que o mundo espiritual é eminentemente ativo na elaboração de sua feminilidade. A identificação com o feminino é atravessada pela própria mãe, mas também por Maria Baiana do Morro, Iemanjá, Iansã e, tal como surge ao final de nossa segunda entrevista, também por sua pombagira Cigana Matilda. Aliás, noto que a pombagira surge em nossa conversa logo após minha fala de que, talvez, Valéria estivesse atravessando um período em que se sente plenamente “mãe”, com dificuldade de integrar-se erótica e materna. A mãe-de-santo afirma que, por enquanto, tem incorporado, sobretudo, seu boiadeiro, pois, como interpreto, ele responde à urgência do terreiro por se constituir. No entanto, começava a receber “recados” de entidades espirituais de que deveria voltar a incorporar sua pombagira.

76Meses depois, começa a atender as pessoas da comunidade em consultas individuais nas quais joga cartas por influência de sua pombagira cigana Matilda. Valéria afirma que quando a incorpora, sente-se mais “altiva” e “lasciva”. Não a encontro pessoalmente depois disso, mas continuo o contato virtualmente. Acompanho-a via facebook e mantemos uma conversa constante. A rede social também é representativa de um processo de transformação da mãe-de-santo. No início de minha pesquisa com ela, suas fotos e assuntos postados se referiam, sobretudo, à umbanda. Valéria aparecia em sua foto de “perfil” vestida de branco. Aos poucos, passa a incluir fotos em que aparece de corpo inteiro, com calça jeans e blusa preta, anteriores ao período que se tornou mãe-de-santo. Em seguida, fotos na praia com trajes de banho mostram-se para mim, inusitadas. É nítido perceber como, aos poucos, é capaz de resgatar uma sensualidade que se mostrava tímida e resguardada. Algum tempo depois, a mãe-de-santo surge acompanhada do namorado, declarando seu “relacionamento sério”. A partir de então, as fotos com seu companheiro em passeios e viagens que realizam na companhia do grupo de motociclistas de que fazem parte, tornam-se a tônica dominante de suas postagens.

77Valéria resgata a “mulher” que dizia não ser vista e parecia não combinar com a sua imagem de mãe-de-santo “recém-nascida”. A partir destas imagens, percebo que meu comentário ao final de nossa entrevista confere sentido. É como se Valéria tivesse passado por um período em que seu corpo fora transformado plenamente em “mãe”, mas apesar de já ser capaz de declarar o desejo de ter um companheiro, necessitava de um processo de elaboração da própria feminilidade para que conseguisse integrar a mãe-de-santo à “mulher”; com isso, quero dizer ser capaz de se ocupar de seus filhos ao passo que se conserva desejante - desejando e se posicionando como causa do desejo do Outro (Lacan, 1969); um processo atravessado pelo mundo espiritual de forma ativa.

78No processo analítico, quando os elementos de uma história familiar estão dispersos, o trabalho do analista é também o de possibilitar que o sujeito possa reconstruir a sua narrativa de modo a integrá-la, e, assim, posicionar-se diante de sua ascendência ao mesmo tempo em que elabora tanto o seu pertencimento quanto sua existência singular (Inglez-Mazzarela, 2006). Em cadeia significante, ao dizer sua história bem como a do próprio terreiro, as entidades espirituais assumiram sentidos que antes não se davam. Ao final da entrevista, a mãe-de-santo me agradece pela oportunidade, mostra-se mais tranquila e declara ter percebido uma coerência em sua narrativa que antes parecia não existir.

79Quando Valéria afirma:

A gente não se deu conta de que tudo tava montado, mas diante do choque e da perda, quem vai enxergar que você tem uma casa montada? Quem vai enxergar que você tem as ferramentas? Ninguém, a gente só via a falta, a falta da minha mãe e a falta da baiana.

80Apresenta-nos que foi capaz de perceber no seu processo de elaboração de luto e assunção do papel de mãe-de-santo que aquilo era seu e, de certa forma, havia sido preparada para tanto sem que o soubesse conscientemente. A dor da perda desestruturou-a e o medo tomou-lhe conta, a ponto de não se reconhecer em sua herança.

O que não está dito, recoberto pelo já dito, é o que permite movimentar a cadeia significante para produzir novos sentidos. Desta forma, o relato dos fatos propicia a criação de cenas, que permitem analisar como se estrutura o desejo na dialética da relação com o outro (Rosa, 2001, p. 126).

81A história da qual me refiro, como analisa a autora, não é encadeamento de fatos, é produção de significâncias que se dão numa trama que se efetiva no dizer, um dizer que se promulga por (re)clamar sentido.

Hoje eu falo pra você que eu faço com amor, hoje é realmente a minha casa, é a minha vida, eu hoje reconheço que eu não tenho escapatória, falo da baiana com saudade, falo da minha mãe, só que eu não posso ficar olhando pra trás.

Considerações finais

82A primeira entrevista realizada com Valéria era exploratória das entidades femininas de forma geral, não necessariamente atinente à sua história pessoal e muito menos em relação à transmissão do cargo. No entanto, ao passo que a realizo no fim deste primeiro ano desde a morte de sua mãe, percebo que outra coisa não poderia ser dita do que aquela que era vivida visceralmente. Ao final da entrevista, a mãe-de-santo se emociona; de fato, algo ali fizera sentido, mas para mim o conteúdo ainda estava disperso. Em casa, ouço a narrativa gravada e percebo que a tônica dominante é o processo de assunção do cargo de mãe-de-santo.

83Meses depois, retorno ao terreiro e peço que Valéria me narre este processo mais detalhadamente. Ela se surpreende. Interroga-me se eu tinha tido este interesse porque ia me tornar mãe (na ocasião estava grávida de dois meses). Respondo que não, pois a percepção veio logo depois de nossa primeira conversa. É então que responde que eu toquei num aspecto muito importante para ela, e se emociona novamente. A segunda entrevista, assim, transcorre de forma fluida, como se fosse uma oportunidade para que elaborasse sua própria trajetória.  

84Ao longo de nossa primeira conversa, ela se deu conta do que parecia desconexo: foi o assentamento de Iansã que lhe deu coragem para aceitar o cargo de mãe-de-santo que estaria por vir anos depois, até que estivesse preparada para vivenciar uma mãe-de-santo de Iemanjá, um processo que se deu graças a um pai e uma mãe: João Boiadeiro e Maria Baiana do Morro. Vive durante um ano inteiramente para o terreiro que começava a nascer. É como o filho novo que necessita de toda a atenção da mãe para poder sobreviver.

85Este estudo de caso apresentou que para herdar é necessário assumir o transmitido como próprio, de maneira que se mostra imprescindível um exigente trabalho psíquico de se posicionar. A baiana, segundo ela, não quis assustá-la com o encargo, mas talvez tenha lhe faltado a nomeação. O não-dito presente durante o processo de luto era eloquente, nem ela nem os outros estavam convencidos de que seria Valéria a pessoa mais adequada para ocupar aquele lugar. O silêncio não lhe oferecia pistas sobre seu devir e faltou suporte no qual ela pudesse se inscrever.

86Por outro lado, a filha não recuou diante da herança, cambaleou em seu destino, mas sustentou-se no transmitido que lhe fez mãe. Valéria atravessa a dor e constrói-se mãe-de-santo ancorada na memória de seus ancestrais ao mesmo tempo em que busca se apropriar e se reconhecer no cargo. Além do tempo necessário para elaborar o luto, precisou se ver na herança, identificar-se com o herdado e não apenas repetir o que a mãe fazia. Não aceita o bastão em estado bruto, ela precisa dar novo sentido, saber que esta casa que será sua também será outra. O legado foi ressignificado para que fosse suportável, para que seja capaz se sustentá-lo.

87Os orixás e as entidades espirituais parecem se apresentar como um sintagma ao qual recorre ao longo de sua trajetória, um percurso que expressa, ainda, um repertório de construção de identidade que passou tanto pelo tornar-se mãe-de-santo quanto pelo “ser mulher”. Ainda que diga que a herança tenha lhe surpreendido, percebemos no seu discurso os indícios deste devir desde a adolescência. O tornar-se mulher e mãe se articulou não apenas com a imagem da mãe real, D. Anélia, mas também com Maria Baiana do Morro (sua “mãe espiritual”), Iansã e Iemanjá, para não avançarmos em tantas outras mais, como sua pombagira. Sua feminilidade articula-se paredes-meia com a assunção do ofício de mãe-de-santo e a plena assimilação da herança recebida. A figura do boiadeiro lhe amparou e surgiu como significante chave para uma coadunação entre o seu desejo e a assimilação de sua herança. Sente-se abrigada na figura deste espírito, mas não aprisionada, elaborando a possibilidade de construir uma mãe-de-santo livre e segura do que faz, desejante.

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Notes   

1  Agradeço à Valéria Pinzo pela generosidade com que me acolheu em sua casa, ofereceu-me a sua história e participou deste texto. Tenho o hábito de entregar o texto aos meus interlocutores para que  possam apreciá-lo antes da publicação. Tendo lido, Valéria solicitou-me que incluísse ou modificasse detalhes que foram prontamente atendidos, e foi mais uma vez generosa com sua leitura, dizendo-me: “menina, você me leu, fiquei emocionada, chorei, chorei”. A princípio, o seu nome e de sua mãe eram fictícios, para preservá-las, mas a mãe-de-santo me autorizou a incluir os originais: “essa é a minha história, pode colocar”. Assim, dedico este trabalho à mãe e à filha : Anélia e Valéria.

2  Este trabalho, parte do pós-doutorado realizado no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP, contou com o apoio da FAPESP.

3  Para maiores informações acerca da umbanda, vale conferir: Brumana & Martinez (1991), Concone (1987), Magnani (1986), Negrão (1996) e Silva (2005).

4  Rosas pra Yemanjá/ Eu vou levar/ Eu vou levar eu vou/ Yemanjá/ Leva pro mar esta saudade/ Da terra mãe distante/ Minha vontade de chorar/ Leva pro mar/ Yemanjá/ Quero curtir felicidade/ Ser livre como as ondas/ Grande como essa imensidão (Fonte: http://reidospontos.blogspot.com.br/p/pontos-de-iemanja.html).

5  Centro, casa, terreiro e tenda são utilizados como sinônimos como referência ao lugar de culto.

6  “Mesa branca” é referida pelos umbandistas como uma prática espírita atinente ao kardecismo. Para maiores informações, cf. Aubrée & Laplantine (1990).

7  Peruíbe dista cerca de 100 km de Iguape. O terreiro localiza-se  especificamente em Ana Dias, bairro de Itariri, pequena cidade vizinha de Peruíbe. Como esta última é mais conhecida, em geral, a comunidade refere morar em Peruíbe quando pertencente ao bairro de Ana Dias.

8  Baiana/Baiano são entidades espirituais do panteão umbandista, para maiores informações a respeito desta classe de espíritos, cf. Macedo & Bairrão (2011) e Souza (2004).

9  As palavras e frases com aspas utilizadas ao longo de todo o texto, bem como os trechos em destaque, fazem referência às entrevistas realizadas com Valéria.

10  Preta-velha/ Preto velho são entidades espirituais do panteão umbandista e referem-se a espíritos de velhos escravos. Para maiores informações, vale conferir Concone (2004) e Dias & Bairrão (2011).

11  Exu, ao lado das pombagiras constitui o que se reconhece pela “esquerda umbandista”, subdivisão do panteão espiritual que separa as entidades telúricas, mais atinentes ao que é carnal e do plano mundano, das entidades compreendidas como atinentes exclusivamente ao que seria da ordem do “bem”. Para maiores informações sobre os exus e as pombagiras, cf. Barros (2012; 2013), Capone (1999), Hayes (2011); Silva (2012).

12  Oxóssi é orixá de cabeça tanto de Valéria quanto de sua mãe, e, para ela, associa-se a obediência.

13  Os boiadeiros são entidades espirituais do panteão umbandista, referem-se a espíritos de homens que em vida trabalharam no trato com o gado. Quando o incorporam, os médiuns simulam movimentos de cavalgadas e levantam os braços de modo a representar a tentativa de enlaçar um animal. Além disso, entoam “bá” e “tchê”, sons expressivos do linguajar coloquial da região sul do Brasil. Não são espíritos tão frequentes nos centros de umbanda quanto caboclos, baianos ou pretos-velhos.

Citation   

Mariana LEAL DE BARROS, «Mulher e Mãe (de santo): transmissão psíquica geracional e elaboração de feminilidade na « passagem do bastão »», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Les numéros, mis à  jour le : 08/09/2015, URL : https://revues.mshparisnord.fr:443/cultureskairos/index.php?id=1059.

Auteur   

Quelques mots à propos de :  Mariana LEAL DE BARROS

                                      Mariana Leal de Barros est docteure en Psychologie (FFCLRP-Universidade de São Paulo), en anthropologie (Université Lumière Lyon 2) et a effectué un pos-doctorat en anthropologie (FFLCH-USP). Elle travaille actuellement en tant qu’analyste dans un cabinet particulier, et en tant que chercheuse membre du Centre d’Études des Religiosités Contemporaines et des Cultures Noires (CERNE-USP), et du Laboratoire d’Ethnopsychologie (FFCLRP-USP).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Mariana Leal de Barros é doutora em Psicologia (FFCLRP-USP), Antropologia (Université Lumière Lyon 2) e Pós-Doutora em Antropologia (FFLCH-USP). Atualmente trabalha como analista em consultório particular, é pesquisadora membro do Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras (CERNE-USP) e do Laboratório de Etnopsicologia (FFCLRP-USP).